Crónicas

Não devia ser preciso sorte

“O que eu passei, não fazes ideia”, costuma dizer. E não sei, não faço ideia do que é esse sofrimento, o que é ter fome, o que é perder um irmão ainda criança, o que é não ir à escola por vergonha.

O meu pai diz-me muitas vezes que o que há agora, o que acontece agora sempre houve, sempre aconteceu. Desastres, miséria, chuva a mais, secas, boas e más pessoas, tudo isso faz parte do mundo e da vida. Os anos que carrega às costas dão-lhe esta perspectiva. Entre o céu e a terra existem poucas novidades e aquilo que é novo e surpreendente como os telemóveis, a ‘cloud’ e a internet não lhe interessam.

O telemóvel é um aparelho que traz no bolso das calças, que quase nunca ouve tocar e quando atende é para dizer que não entende palavra do que estamos a gritar do outro lado. Às vezes, quando precisa de alguma informação, pede que veja através da internet, assim por intermédio do computador. Tem uma vaga ideia de uma realidade virtual, mas nada que lhe ocupe o pensamento durante muito tempo.

A vida é o que toca e sente, as noticias que vêm no jornal ou dão na televisão. Preocupa-se muito se a fruta amadurece nas árvores, com as galinhas e os cães e cumpre à risca o passeio para tomar um café ao fim do dia. Com chuva ou sol, nos dias grandes e nos dias curtos, o passeio à tarde é sagrado, a voltinha que não dispensa. É o que o mantém aqui, como a casa, o quintal e a horta. Para o meu pai o que existe é o que consegue tocar e as memórias. De quando era novo, dos anos em que esteve casado, das duas vezes que foi casado, da minha mãe e da minha madrasta.

Às vezes, lembra-se de quando era criança e é estranho. Na nossa cabeça os nossos pais nunca foram crianças, parece-nos esquisito ouvir um velho falar da infância com um brilho nos olhos, a voz cheia da saudade da mãe, dos irmãos, todos juntos numa casa onde o frio entrava pelas frestas das portas e janelas. E o zumbido do vento misturava-se com a fome, o estômago colado às costas, tão vazio que custava a adormecer. A memória traz depois as imagens do irmão que morreu em novo.

O meu pai jura que aquele irmão morreu de tristeza, de desgosto, que não aguentou o que a vida exigia dele naquela casa de fome e frio no Curral Velho de há 70 anos, ainda a luz eléctrica não tinha chegado e as crianças iam à escola quando calhava. Era muita miséria, nem todos resistiam à miséria. Quando chega a esta parte, o meu pai costuma abanar a cabeça, costuma dizer que passou por muito e que começou cedo, ainda criança e com um irmão morto. Uma daquelas mortes das estatísticas de um país pobre, uma vítima esquecida.

“O que eu passei, não fazes ideia”, costuma dizer. E não sei, não faço ideia do que é esse sofrimento, o que é ter fome, o que é perder um irmão ainda criança, o que é não ir à escola por vergonha. Eu tive sorte e de muitas maneiras. E este homem, a quem oiço contar histórias, nunca me cobrou o sofrimento, nem o que quer que seja a não ser um pouco mais de companhia. Não sei como fez, mas disse-me muitas vezes que as escolhas, todas as escolhas, seriam minhas. E disse-o há mais de 40 anos, quando o machismo era descarado e as famílias mandavam as filhas para a costura e os filhos para o liceu.