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Questão de metades

O corpo lá vai fazendo concessões, mas o espírito, esse mantém-se no tempo que define a sua essência

Ouvi esta semana num qualquer noticiário nacional que pela primeira vez, na nossa história mais recente, se dá a curiosa circunstância de apenas metade da população portuguesa ter assistido à Revolução de abril. A outra metade, atualmente com menos de 44 anos, conhece-a dos livros e dos testemunhos dos que a viveram.

A objetividade da estatística, na verdade, apanhou-me desprevenida. A mim, que pertenço à primeira metade e que ando às voltas para me encaixar noutra metade, a da minha vida, se é que os cinquenta podem ser assim considerados. Ainda há poucos dias, aliás, o desabafava a um amigo que já se estreou nesse decénio há cinco anos e que, com indisfarçável paternalismo, me exortava a esperar que o tempo sarasse a estranheza da coisa. Não que seja mal estar, perturbação ou sequer tristeza, mas apenas uma sensação de pasmo que resulta da dessincronia entre a cronologia do calendário e a da alma. Sim, porque a passagem do tempo não é condição para que o eu que nos habita se ajuste a uma idade. O corpo lá vai fazendo concessões, mas o espírito, esse mantém-se no tempo que define a sua essência. O meu acho que se deixou ficar naquele enclave em que a juventude já não é um estorvo nem a velhice uma ameaça, em que há tempo para falhar e recomeçar, em que as coisas mais importantes não são necessariamente as mais espetaculares, em que o ser vale mais que o parecer.

Talvez por isso, talvez por isso mesmo, saber que faço parte dos cinco milhões e cem mil portugueses que viveram abril é uma espécie de bálsamo para o meu desfasamento existencial. Não só pelo significado da efeméride em si, mas também, e sobretudo, por me recordar que pertencer a essa metade me concedeu o privilégio de viver num mundo mais real, mais consciente e mais consequente. Provavelmente, um mundo mais genuíno porque mais privado e intimista, sem janelas indiscretas, sem espetadores curiosos, sem narcisismos desmesurados. Um mundo sem likes, sem emojis, sem mesas de café com casais que se ignoram mutuamente perdidos nos écrans dos respetivos telemóveis, sem encontros repletos de selfies sorridentes, sem país e filhos ausentes de si e dos outros, sem “diretos” que se substituem à ação quando a desgraça acontece. Um mundo, em suma, rendido à palavra e/ou ao silêncio ponderado e não à imagem imediata e mediática.

Confesso que muitas vezes tenho saudades desse mundo testemunhado pela metade da qual faço parte, a tal que assistiu ao se fazer da história em Portugal. Sinto-as não como quem perdeu algo, mas como quem percebe que o mundo mudou demasiado rápido, tornando-se um lugar cada vez mais estranho, cada vez mais assustador. Mais sensível e tolerante, sem dúvida, mas também, e paradoxalmente, mais indiferente e mais, muito mais, inconsequente e apático.

Se calhar, na verdade, a minha dessincronia não seja entre a minha certidão de nascimento e o meu eu, mas entre o mundo da metade da qual faço parte e o da desses outros de que falam as estatísticas. Sabê-lo é perturbador, principalmente perante a evidência de que ambas as metades deixarão em breve de o ser. A segunda impor-se-á à primeira, à minha. E então, sem eu dar por isso, o meu mundo passará à história. De vez.