Crónicas

Dar o litro

Uma adolescência conturbada, tão cheia de certezas e de peitos inchados, tão repleta de slogans desafiadores e de sentimentos tortuosos. O avô deste rapaz também já foi assim, mas a vida encarregou-se de dobrar essa vontade doida de se destacar dos restantes.

O mundo divide-se entre os bons, os maus e os assim-assim. Nunca percebi muito bem os que ficam eternamente confortáveis no meio desta tabela que não foi criada por mim, mas sim por um adolescente que, de forma desafiadora, confessou que não acredita na Educação.

Os entretantos justificam-se perante as necessidades e adversidades da vida. Bocas para alimentar, família para sustentar, ganhar um ordenado ao fim do mês, são alguns dos fatores que nos levam a fazer uma paragem obrigatória (mas não eterna) ao campo do assim-assim.

Mas...até quando?

A resignação faz mal ao corpo. A mente ressente-se cada vez que engolimos em seco, cada vez que mordemos a língua para não deixar escapar o que nos vai na alma. Esmorecemos sempre que travamos o impulso de intervir, opinar, sugerir e até criticar.

Mas... até quando?

O Augusto foi um dos tais que trabalhou uma vida inteira numa empresa que não reconhecia o seu valor, nem queria saber das suas ideias. Com o tempo, acabou por se deixar ficar, tal como tantos outros que por lá passaram. Limitava-se a abanar a cabeça porque assim tinha de ser. Porque precisava de pôr comida em casa, garantir o sustento da mulher e dos três filhos, pagar as contas cada vez mais asfixiantes de uma família longe de ser remediada. E mesmo depois dos filhos estarem criados e prontos para a vida, o Augusto continuou a fazer o que não gostava, a ouvir o que não merecia, a sonhar secretamente com o que não tinha.

Costumava dizer, entre dentes, que o mundo está cheio de pessoas que não sabem o que custa a vida. Das poucas vezes que decidiu transmitir alguns ensinamentos aos mais novos, revelou que era como um alfaiate, cosendo e juntando as peças da vida, numa demorada e absorvente missão. A reação não foi a esperada e o Augusto decidiu que não valia a pena «lavar a cabeça a burros porque era gastar água e sabão à toa».

Pelo meio da sua longa travessia profissional, viu gente meritória subir na vida, assistiu à promoção de outros indignos de um aumento salarial, mas exímios na hipocrisia do “passar manteiga” aos patrões, mudou de secretária umas quatro ou cinco vezes, as mesmas que o obrigaram a mudar de instalações. E sempre que passava de cavalo para burro, abanava a cabeça em sinal de consentimento. A dada altura, convenceu-se que tinha sorte em manter um trabalho durante tantos anos, garantindo o ganha-pão ao fim do mês. Conheceu pessoas novas, viu colegas a partir mais cedo deste mundo, vestiu-se de negro para assistir aos funerais e continuou a dar os bons dias sempre que entrava no escritório, mesmo que fosse ignorado por aqueles novatos, armados em espertos, que o achavam um peso morto.

- Eles não sabem o que custa a vida...

O miúdo que não acredita na Educação e que divide os seres humanos em três grupos, refugia-se nos sons que produz na sua guitarra. Gosta de ser diferente de todos os outros. Assume-se como «um autêntico baldas» e diz que não precisa da escola para compor música. Ali, não aprende as emoções que são necessárias para fazer sair as melodias das cordas e garante que quando tiver a sua idade vai «bazar daqui pra fora».

Uma adolescência conturbada, tão cheia de certezas e de peitos inchados, tão repleta de slogans desafiadores e de sentimentos tortuosos. O avô deste rapaz também já foi assim, mas a vida encarregou-se de dobrar essa vontade doida de se destacar dos restantes.

E tal como o senhor que se vestia de negro para prestar homenagem aos colegas que partiram, este miúdo não vai aprender o que significam aquelas palavras de um político que defende que o pensamento crítico da sociedade começa nos bancos da escola.

Não vai conhecer a beleza da Filosofia, a importância da História, nem vai deixar-se seduzir pela ciência, ou pelas fórmulas e números.

- De que serve dar o litro e ver todos os outros a passar à frente?

É baixar os braços sem sequer ter tentado erguê-los. Certamente, um dia, vai saber o que custa a vida...