Matança do porco
Anos cinquenta, século passado, a freguesia de Santana, então recheada de casinhas de palha, acompanhadas de pequenas cabanas com chão de terra batida a que lhe chamavam de cozinhas, por ser ali que se confecionavam os alimentos.
A escassos metros destas cozinhas, ficava o chiqueiro do porco, animal tido como um pilar na economia familiar da época.
Eram alimentados com os produtos que a terra produzia e com as águas da lavagem da loiça,
que era lavada num alguidar.
Criado numa meia convivência com os humanos, víamos a partir de Outubro ou Novembro os bácoros à solta nos terreiros das casas, alguns com dormitório num canto das referidas cozinhas. Estes bácoros eram os substitutos que haviam de ocupar o lugar dos porcos adultos prestes a serem abatidos.
Animais, quase considerados de estimação, não fosse o destino para o qual eram criados, tal era a estima que lhe davam ao longo do ano. Estavam condenados a serem abatidos no mês de Dezembro.
Eu como criança daquela época com carências alimentares, não sabia ver se o abate do animal era feito da forma mais correta ou menos correta. Contava os dias que faltavam para a matança do porco, queria aquela festa familiar, pelo alegria do convívio e sobretudo tirar a barriga da miséria da carne que não comia durante o ano.
Após o meu pai ter anunciado a data da matança, que era escolhida a coincidir com a data das primeiras missas do parto, eu e os meus irmãos começávamos na contagem decrescente dos dias.
A hora escolhida pelo meu pai, era sempre de madrugada.
O tio Baleia, era o homem escolhido para tal desiderato.
Então na madrugada combinada, eu pulava da cama abaixo quando ouvia a voz do tio a anunciar a sua chegada.
-Ei, compadre...
Gritava ele para o meu pai
-Vamos avançar...
Eu corria ao seu encontro para lhe pedir a sua bênção, mas também pelo sentimento de vê-lo ali a anunciar aquela festa.
Aquele petromax que ele trazia aceso na mão, que quebrando o escuro da madrugada, numa aldeia que não conhecia a luz eléctrica, por si só já me fascinava.
Após um pequeno-almoço diferente dos outros dias, começava a festança, onde não faltava o tal dentinho feito já com o sangue do animal, para acompanhar o precioso liquido que saia do garrafão, que eu ou os meus irmãos eramos os encarregados de o distribuir e também bebíamos a nossa doze.
Após esta tarefa cumprida, íamos para o almoço, que já nos esperava na mesa.
Aproveitava-se esta hora para falar dos pormenores da matança num alegre convívio com a presença dos outros tios e vizinhos que tinham ajudado naquela trabalheira.
Pela tarde vinham as vizinhas ajudar a lavar as tripas do porco na ribeira mais próxima, num trabalho feito com alegria, com direito a lanche, já com fígado de porco.
Durante o dia convidava-se os amigos a verem o porco, que dependurado se exponha com um golpe na zona lombar para se medir a altura da gordura. Este convite servia de pretexto para refrescar a garganta naquele dia festivo.
À noite a festa continuava, era a salga, que consistia na preparação da carne numa salmoira dentro duma salgueira para sua conservação,
Entre ouros petiscos, a espetada era o que mais sobressaia, sempre bem regada pelo garrafão.
Faziam parte deste ritual, as histórias falando do passado, que na minha curiosidade de criança, gostava de as ouvir. As histórias das feiticeiras também entravam na conversa e embora eu gostasse de as ouvir, acabava ficando com medo de sair à rua.
Lembro-me naquela noite quando passou uma ave nocturna a emitir alguns sons, vira-se o tio Baleia para o meu e diz:
-Está ouvindo compadre, mau augúrio, ou “tempestada” ou morte na lombada.
-Desengane-se compadre, disse o meu pai.
O compadre não acredita, mas quando a Aninhas laranja estava doente passou por lá um bicho destes e três depois ela morreu.
Terminada esta farra, no dia seguinte era a distribuição das ofertas de carne por alguns vizinhos e o derreter da banha do porco, importante para o tempero da comida ao longo do ano.
Assim se vivia aquele dia de festa, onde para mim e muitas outras crianças era superior ao natal.
Resta a saudade daquela aldeia sadia, onde toda a gente se conhecia e se cumprimentava, com um boa tarde, boa noite ou bom dia.