Crónicas

A serpente e o gatinho

Entre ir para casa brincar com gatinhos e ficar a ouvir as palavras venenosas, jocosas e arrogantes da serpente, muitas vezes travestida de Calimero, creio que a escolha é mais do que óbvia, mesmo para aqueles que são alérgicos aos felinos

Viver sem confiança no futuro é algo de tão avassalador que nos empurra para um beco sem saída. E quando se perde de forma cruel e definitiva a esperança no amanhã, somos levados a tomar opções desesperadas.

A situação agrava-se quando desaparece não só a autoconfiança individual e coletiva, como também a fé depositada em instituições e líderes. A traição à palavra de honra e às promessas, tão vulgarizada nos dias de hoje, conduz ao rancor, ao medo e à procura incessante de uma tábua de salvação que nos deixe respirar e ver, talvez pela primeira vez em muito tempo, um vislumbre do que poderá ser não só a nossa segurança e qualidade de vida, como também a dos nossos filhos.

As massas tendem a agarrar-se a todos aqueles que aparecem com juras de amor eterno, com murros na mesa que têm de ser dados na hora certa, demonstrando verticalidade e autoridade. A sensação de paternalismo que é transmitida dá-nos o conforto que é reforçado com palavras que são ditas de forma convincente e que espelham os sentimentos generalizados de uma sociedade.

O truque não é novo, mas é cada vez mais eficaz graças às facilidades de comunicação: adotar um discurso político que traduza, na perfeição e com um toque de reality show, as inseguranças e desejos da população. Não interessa revelar como é que vão chegar lá, mas sim apontar com o dedo em riste onde querem chegar. Ou seja, vivemos num tempo de abreviaturas, em que tudo o que interessa aprofundar e discutir é colocado de parte.

Quando olhamos para todos os lados e vemos o galopar diário da degradação moral, a corrupção, a impunidade dos prevaricadores de fato e gravata, o agravamento das condições de vida dos cidadãos, os estranhos silêncios sobre as teias que existem e que ninguém se atreve a desmontar, a frustração de perceber que os de “sangue azul” continuam a assegurar empregos em detrimento do mérito e das capacidades dos “sem nome”, faz com que se deseje uma mudança urgente nos paradigmas que regem a sociedade.

A democracia trouxe-nos a liberdade de escolher. E muitas vezes, essa escolha assenta entre o mau e o muito mau. Não há hipótese...

Foi essa a lição dada por aquele povo que diz orgulhosamente que “Deus é brasileiro”. Uma lição vista com horror e asco por muitos europeus que não sabem, nem vivem as realidades diárias do que se passa naquela que foi uma das colónias mais ricas do império. É tão fácil apontar o dedo para a casa dos outros, quando também nós, aqui na cauda da Europa, padecemos de um mal que começa a ser muito preocupante: a hipocrisia extremista.

Certas auto intituladas elites estão empenhadas em semear na cabeça das pessoas mais comuns a ideia de que todos aqueles que não pensam como elas, não são dignos de merecer crédito. O debate não é desejável, nem tão pouco a troca de argumentos, o que leva à contínua falta de respeito pela opinião divergente. Os extremismos e as intolerâncias residem nas atitudes diárias daqueles que apregoam liberdade, liberdade!

Nas últimas semanas e a propósito das eleições brasileiras, vi e ouvi pessoas a banir da sua lista de “amigos” todos aqueles que não partilhavam da sua opinião. E pensei cá para mim: é esta a noção de democracia que tanto apregoam? Ou pensas como eu ou estás fora? Não será isto uma forma “fascista do Século XXI” de querer impor o pensamento único aos demais?

A legitimidade do voto e das escolhas deve ser obrigatoriamente respeitada. Colocar em causa a idoneidade da preferência da maioria é negar a própria liberdade de escolha. Nas últimas autárquicas, por exemplo, ouvi vezes sem conta o PSD a referir-se às câmaras perdidas como tendo sido “roubadas” pelos outros que as ganharam, o que demonstrou um tremendo desrespeito pela escolha do cidadão. Um desrespeito carregado de arrogância de quem se achava (acha) a única opção.

Com as estruturas abaladas desde então, seguiram-se os espetáculos para entreter à boa moda romana do pão e circo, numa tentativa cada vez mais aflitiva para não perder o pé nessa praia de ondas que ora vêm, ora vão.

Também aqui as escolhas não são fáceis, mas quando vemos o perpetuar dessa tal arrogância que há muito substituiu a humildade e a identificação com os sentimentos populares, as massas ficam tentadas a escolher o mal menor. Aquele que, apesar das fracas bases e das aparências, surge como uma tábua de salvação, uma lufada de ar fresco que transmite a tal autoconfiança que é tão necessária para a caminhada individual e coletiva.

Por isso, entre ir para casa brincar com gatinhos e ficar a ouvir as palavras venenosas, jocosas e arrogantes da serpente, muitas vezes travestida de Calimero, creio que a escolha é mais do que óbvia, mesmo para aqueles que são alérgicos aos felinos.