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A paternidade espiritual de Dom Maurílio

a paternidade espiritual foi certamente o seu ministério mais abundante. Ouvi-lo era ouvir um pai

Se há um estilo que marcou a geração de D. Maurílio de Gouveia, e a ele muito em particular, foi o estilo conciliar. De facto, o espírito do Concílio Vaticano II, com a redescoberta de uma eclesiologia de comunhão, com a refontalização vigorosa do agir eclesial na Sagrada Escritura e na polifónica riqueza da Tradição, com a vontade explícita de realizar um diálogo aberto e frutuoso com o mundo, trouxe também a necessidade de encontrar um estilo novo de Pastor. Aquele padre do clero do Funchal, então com 41 anos de idade, reunia predicados importantes: tinha uma formação teológica consistente, feita numa grande universidade romana nos anos que imediatamente precederam a convocação do Concílio, mas onde o debate da renovação estava já presente; criara uma ponte importante da Igreja do Funchal com a sociedade, enquanto diretor do Jornal da Madeira; interiorizara amplamente o modelo da Ação Católica e trazia, assim, a atenção aos sinais dos tempos no seu DNA; cultivava uma atitude de proximidade e de finura nas relações que estabelecia à sua volta. Será ordenado bispo em 74, o ano da revolução, e coube-lhe acompanhar, já no episcopado, a construção da nossa democracia. A própria Igreja precisava atualizar-se internamente com as novas linhas do concílio e encontrar o seu lugar no espaço público, como interlocutora credível no Portugal democrático. Foi uma enorme tarefa, e Dom Maurílio de Gouveia rapidamente emergiu como um dos protagonistas decisivos: a sua nomeação como arcebispo de Mitilene e Vigário Geral do Patriarcado de Lisboa aconteceu em 1978 e, poucos anos depois, o Papa João Paulo II destinava-o para uma das três sedes metropolitas do país, Évora, onde deixaria um relevante legado pastoral.

Este é, talvez, um retrato visto de fora. Confesso que me interessa mais ainda o retrato que se possa desenhar a partir de dentro, vislumbrando a sua alma de Pastor. Nesse sentido, gostaria de sublinhar três aspetos que a mim pessoalmente me marcaram, no que pude testemunhar dele e nas suas palavras e gestos que dele recebi. O primeiro traço do seu perfil era uma paixão enorme pela Igreja, que para Dom Maurílio se constituía verdadeiramente como Povo de Deus. Ele era um bispo que valorizava e estimulava com decisão a participação do laicado. Acolhia com abertura o despontar de novos carismas e movimentos eclesiais, porque para ele a Igreja era um corpo que encontrava a sua unidade na diversidade de dons e chamamentos. Lembro-me, por exemplo, como nos últimos anos o animava a procura de modelos de santidade laical, porque acreditava que o laicado, a vida das famílias, o percurso de tantos cristãos que se empenharam na edificação do mundo, representava um extraordinário recurso que merecia ser melhor conhecido. O segundo traço liga-se precisamente a isso: à santidade. Dom Maurílio era um pastoralista eficaz, sabia organizar as várias estruturas eclesiais, interessava-se pela práxis. Contudo, para ele, a vida da Igreja nunca foi apenas uma questão de organização. Um dos temas que verdadeiramente o apaixonava era o da santidade, não uma santidade idealizada, mas real, com vidas, rostos e nomes, uma “santidade da porta ao lado”, como a definiu recentemente o Papa Francisco. E falar da santidade é compreender que a Igreja é também mistério, funda-se numa experiência do Espírito Santo, não se reduz àquilo que os nossos olhos são capazes de ver. O terceiro traço que destacaria no seu retrato tem a ver com a sua paternidade espiritual. Um bispo é um guia do rebanho e um mestre da fé. Dom Maurílio de Gouveia viveu bem essas dimensões, mas quis exercer o seu magistério como uma forma de paternidade espiritual, que se traduzia na oração intensa, na escuta, no acompanhamento, no estímulo, na transmissão do Espírito. E, nos anos que Deus lhe concedeu viver já como emérito, a paternidade espiritual foi certamente o seu ministério mais abundante. Ouvi-lo era ouvir um pai. Por isso, que tenha partido no dia de São José, foi certamente um sorriso de Deus.