Gestão Municipal e Habitação.
1. As autarquias, esquecidas, sempre tratadas como coisa menor, como o primo pobre da democracia, e, no entanto, são elas que decidem se o quotidiano é suportável ou se se transforma numa sucessão de pequenos tormentos. É nelas que se sente a política sem intermediários, é nelas que se distingue a governação que existe da governação que se promete, porque não há maneira de esconder o que não funciona: a rua que se desmancha, a água que se perde, a infraestrutura que não serve, a escola que continua a cheirar a pó velho e a humidade. O Parlamento pode falar de macroeconomia, o Governo pode inventar reformas, mas é no município, na freguesia, que se percebe se a vida anda para a frente ou se está parada no tempo.
As eleições de Outubro, este Outubro que se aproxima, não são, por isso, uma data indiferente. São a única oportunidade de escolher se se continua a sustentar um modelo esgotado, baseado em favores, compadrios e propaganda, ou se se tenta finalmente construir um poder local capaz de responder às exigências de um século em que a proximidade é fundamental e a improvisação já não basta. O dilema é esse: entre o atraso repetido, embrulhado em promessas que se desmoronam, e a tentativa séria de criar municípios que funcionem, que respeitem os seus habitantes e que não sejam apenas montras para os partidos.
Um programa autárquico digno não pode ser uma lista de intenções vagas. Tem de partir de uma visão clara e pragmática. Pensar global e agir local, como tão bem definiu Ulrich Beck. Uma autarquia que não entenda esta máxima está condenada a olhar para o umbigo. O futuro de cada concelho não se constrói ignorando o mundo, mas adaptando o mundo às suas particularidades. É preciso governança digital, não como moda importada, mas como prática quotidiana: serviços online, balcões únicos, processos administrativos simples. O cidadão não pode continuar a perder tempo com papéis que já existem noutros arquivos. E a transparência não é luxo: é condição. Transmissão em directo das reuniões, publicação de todas as contas, metas claras, portais de transparência acessíveis a todos. O segredo só serve os que nada têm para mostrar.
Depois, o que se exige é que os municípios se transformem em espaços inteligentes. Não “smart cities” de brochura, mas comunidades em que a tecnologia resolve problemas concretos: iluminação pública controlada, gestão de resíduos eficiente, sistemas de rega de jardins inteligentes, mobilidade eléctrica que não seja apenas um cartaz de campanha. A transversalidade é decisiva: economia, cultura, educação, ambiente, turismo e tecnologia não podem ser compartimentos estanques. Tudo deve comunicar, tudo deve servir para melhorar a qualidade de vida.
A democracia participativa não pode ser um chavão. É preciso abrir a administração à cidadania, criar mecanismos de consulta, descentralizar para as juntas de freguesia com recursos adequados, facilitar a vida dos munícipes com balcões de serviços simplificados. É preciso apostar na inovação social: parcerias entre municípios, empresas, associações, universidade, capazes de resolver problemas reais: do desemprego ao envelhecimento, da desigualdade à saúde. Concorrer a fundos europeus, aproveitar redes internacionais de cidades criativas e inteligentes, trocar experiências, aprender com os outros. Um município fechado em si mesmo é um município condenado.
Na atractividade, está em causa mais do que estética urbana: trata-se de tornar os concelhos espaços onde se queira viver, trabalhar e investir. Divulgar empresas locais, promover intercâmbios, organizar eventos de capacitação para empresários, cooperar na criação de melhores redes de transporte, aliviar congestionamentos, reforçar a segurança viária, garantir acessibilidade a todos. Sem isto, não há fixação de população, não há futuro.
No plano económico e social, um programa sério começa por aliviar a pressão fiscal. A revisão da derrama, a devolução do IRS no máximo possível, o IMI na taxa mínima, a simplificação das taxas municipais, a eliminação das mais absurdas. Tudo isto significa dar espaço às famílias e às empresas. Mas não basta reduzir impostos: é preciso criar condições de desenvolvimento. Identificar investimentos estratégicos, apoiar pequenas e médias empresas, estimular criatividade e inovação, modernizar regulamentos, apostar em educação inclusiva e infraestruturas seguras, investir na juventude, criar espaços de convívio para idosos. Não se trata de discursos piedosos: trata-se de racionalidade. Uma comunidade que abandona os mais novos e os mais velhos é uma comunidade que se suicida.
E há ainda a cultura e o desporto, tantas vezes esquecidos ou reduzidos a ornamentação. O mapeamento do património, a valorização dos monumentos, o apoio às indústrias criativas, a promoção de projectos intergeracionais, a rentabilização de equipamentos desportivos. Tudo isto não é luxo: é identidade, é memória, é coesão.
No ambiente, o discurso não pode continuar a ser retórico. O que se exige é rearborização urbana, parques verdes, defesa da orla costeira contra a cobiça imobiliária, incentivos fiscais para quem protege a floresta, limpeza de bermas para prevenir incêndios, melhor gestão da água, tarifas justas e transparentes, compostagem incentivada, criação de ecovilas nas zonas rurais. Uma política que não trate a paisagem como descartável, mas como herança e como futuro.
E, acima de tudo, é preciso transparência e responsabilização. Um plano anticorrupção municipal, um portal onde tudo esteja visível, a transmissão em directo das reuniões, a publicação das agendas dos eleitos. Não há democracia sem escrutínio, e não há escrutínio sem informação.
Um programa não pode prometer tudo e um queijo. Um programa eleitoral não pode prometer o impossível. Limita-se a dizer o óbvio: governar menos, mas governar melhor. Abrir as contas, simplificar os processos, confiar nos cidadãos, proteger quem precisa sem transformar a ajuda em dependência, incentivar quem cria riqueza, preparar o futuro sem hipotecar o presente. Não é caridade, não é clientelismo, não é favor. É liberdade. E é isso que está em causa em Outubro: continuar a fingir que temos municípios governados ou, finalmente, ter municípios que governem de verdade.
2. Em plena pré-campanha autárquica, e eu a ouvir falar de casas como quem fala de frangos assados ao domingo, um alarido de programas e subsídios e promessas de arrendamento barato, e ao mesmo tempo um silêncio pesado, esse silêncio de igreja abandonada, sobre o Regulamento Geral das Edificações Urbanas e o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, dois cadáveres legais a governar ainda o que se constrói e o que não se constrói, como se a crise da habitação fosse apenas falta de boa vontade e não o resultado de cinquenta anos de leis cegas. Dramático, claro. Trágico, se quisermos ser sérios.
O RGEU, 1951, país pobre, casas húmidas, crianças ranhosas a dormir em sótãos sem janelas, a obsessão sanitária de uma ditadura que queria pôr ordem nas latrinas. E o regulamento ficou, como ficaram os retratos a carvão nas casas dos avós, amarelecidos, tortos, mas ainda a mandar. Nunca reformado a sério, apenas pintado de fresco aqui e ali, sempre velho, sempre desajustado, sempre a embaraçar. Um catálogo de regras mortas, impostas como se o tempo não tivesse passado, a sufocar qualquer hipótese de inovação, a atrasar, a encarecer, a travar como se o século XXI fosse uma alucinação colectiva.
Depois o RJUE, 1999, a promessa da modernidade, a simplificação, a clarificação, a rapidez. Uma promessa que apodreceu logo ao nascer. O que trouxe foi a multiplicação dos papéis, os corredores intermináveis das câmaras municipais, pareceres que se perdem como cartas de amor nunca abertas, consultas e pareceres, carimbos, prazos que escorrem em anos. Um labirinto em que cada projecto entra de pé firme e sai aleijado, se sair. Sem casas novas, sem investimento, restam preços em espiral, sempre mais altos, sempre mais distantes da maioria.
E ainda há quem fale de reabilitação urbana, com um ar sério, como se não soubesse que com o RGEU e o RJUE a comandar não há reabilitação possível. Uma treta, uma grandessíssima treta, essa palavra dita com desprezo no café, dita com raiva. Porque nenhum prédio devoluto se salva com leis que tratam cada pedra como se fosse um crime, nenhum projecto resiste a camadas e camadas de burocracia, custos, exigências, prédios a apodrecer, ruas inteiras a cair.
O que temos é um sistema que transformou a construção num privilégio de poucos: os que podem pagar, esperar, perder anos de vida em requerimentos e ofícios, enfrentar a boa vontade caprichosa de técnicos e políticos. A inovação: novas técnicas, novos materiais, novas ideias, fica esmagada debaixo das normas absurdas. O futuro fecha-se, como se a lei tivesse sido escrita não para abrir, mas para fechar. Protege-se quem já tem, bloqueia-se quem precisa, conserva-se o imobilismo como se fosse virtude.
E os candidatos, todos, fingem não ver. Falam de rendas, falam de subsídios, falam de programas com nomes solenes, falam de facilitar licenciamentos quando isso é legalmente impossível, e calam o que realmente conta. Não é ignorância, é cumplicidade. Porque tocar no RGEU e no RJUE exige coragem, e coragem é mercadoria escassa. Enquanto não forem rasgados e refeitos, Portugal, e a Madeira também, viverão a mesma mentira: a habitação como privilégio, não como direito.
A crise não está apenas no preço, está nas entranhas da lei, no edifício legal que impede o edifício real. E enquanto ninguém o disser, enquanto nenhum político arriscar a verdade, tudo o resto não passa de teatro, teatro barato, com actores medíocres e plateia cansada.