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A Matança dos Inocentes

Para um certo número de crentes, muito do que se passa hoje na Palestina, e em particular em Gaza, tem origem na tradição bíblica, materializada nos Antigo e Novo Testamento. A História do povo hebreu, e dos seus inimigos, aparece aí contada de forma fascinante, tendo servido de base a três religiões.

Um dos episódios chocantes, narrado no Novo Testamento, é o da Matança dos Inocentes. Segundo o texto do Evangelho de S. Mateus, o rei Herodes, o Grande, mandou matar todas as crianças de Belém para evitar perder o trono para um recém-nascido, anunciado e descrito pelos Reis Magos como o “Rei dos Judeus”. Assim foi ordenado e cometido um infanticídio colectivo sobre o seu próprio povo, não propriamente para o livrar esse povo de alguma desgraça, mas para garantir a sua permanência no trono.

Herodes devia o seu poder aos Romanos, que o nomearam rei, contra várias oposições, quer étnicas, quer religiosas. Alterou a forma do poder político, baseando-o na vontade do rei, em vez da tradição. Para seu conforto e segurança, mandou construir palácios e fortalezas (entre elas a de Massada) e o Novo Templo de Jerusalém.

Essa crueldade e desrespeito pela Vida Humana marcaram o imaginário dos cristãos ao longo dos séculos, sendo abundantes as referências ao episódio, e muito numerosas as obras de arte inspirados por ele. Sobretudo durante a chamada Contra-Reforma, em que as igrejas eram decoradas com quadros de inspiração religiosa, representando cenas bíblicas e imagens de santos, que ajudavam os padres nas suas pregações. Não só porque uma imagem vale por mil palavras, mas porque a esmagadora maioria dos fiéis era analfabeta.

Neste caso, Herodes era a personificação do Anti-Cristo.

Mais de vinte séculos depois, eis a Palestina mergulhada num genocídio, de proporções gigantescas, quando comparado com a Matança dos Inocentes. E não dirigido contra o próprio povo, mas contra outro, dividido mais pela religião do que por diferenças étnicas. O que não justifica nada: são seres humanos dotados dos mesmos direitos, cujas raízes mergulham nos textos sagrados, que moldaram o que chamamos a civilização ocidental, embora não reconheça limites geográficos ou étnicos.

Que pode haver de comum entre estas duas manchas negras da História?

Herodes queria garantir o seu trono, tão frágil quanto ilegitimamente adquirido.

Netanyahu tem estado ligado ao poder desse 1996, com interrupções, através de uma série de alianças, indo do centro até à extrema-direita.

Em 2019, o procurador-geral israelita tornou público que iria indiciar Netanyahu com acusações de suborno e fraude em três casos distintos. Para não ir a tribunal, Netanyahu teria de continuar no cargo, o que fez através de uma coligação com ultraconservadores políticos e religiosos. Estes ficavam com a chave do poder, porque sem eles não haveria coligação viável.

Igualmente, Netanyahu e seus parceiros promoveram uma reforma judicial, reforçando os poderes do executivo, que levou a muitos protestos em Israel.

Portanto, Netanyahu depende de um frágil acordo, que o obriga a seguir a extrema-direita política e religiosa. Da qual dois ministros exigem a incorporação imediata da Cisjordânia no Estado de Israel, entre outras reivindicações.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mas há coisas que nunca mudam, como a matança de inocentes.