DNOTICIAS.PT
Artigos

O desafio da música na era digital

A indústria da música mudou, e não foi pouco. Mas no meio de tanto streaming, o que ainda nos comove é o que é humano: a recomendação certa, a ligação emocional, a voz que alguém escolheu para nos apresentar.

Durante décadas, a rádio foi a grande curadora musical. Era esta que ditava o ritmo dos nossos dias, que nos surpreendia com novas vozes e nos ensinava a gostar do que ainda não conhecíamos. Hoje, com os algoritmos das plataformas de streaming, essa mediação tornou-se quase automática. A playlist personalizada reflete os nossos gostos, mas nem sempre abre janelas para o novo. Talvez por isso, paradoxalmente, muitos continuem a regressar à rádio: precisam de alguém que os surpreenda.

Se antes os álbuns contavam histórias, agora vivemos de single em single. Já não se espera meses por um disco: lança-se uma canção e, dias depois, outra. Essa fragmentação altera a forma como nos ligamos aos artistas. Na era do CD criávamos laços com o músico; hoje, com sorte, ligamo-nos a uma ou duas canções. Ainda assim, as músicas que mais nos marcam continuam a ser as que alguém nos apresentou. Pode ser um DJ a passar o tema certo, um amigo a partilhar um link com um “acho que vais gostar disto”, ou até um algoritmo que, por acaso, acertou. O fator humano, mesmo mediado pela tecnologia, continua a ser decisivo.

E se a rádio ensinava a escutar, a televisão fazia-nos sonhar. Bastava sintonizar um canal para entrar num universo comum. Simon Cowell foi uma dessas figuras incontornáveis, com a sua postura firme e a capacidade quase mágica de descobrir talentos. Tive a oportunidade de o conhecer numa das grandes conferências de comunicação digital realizadas em Portugal e percebi que a sua intuição sobre o poder do entretenimento continua viva. Na televisão que nos marcou, o seu “não” duro ou o “sim” entusiasmado criavam tensão, mas também esperança. Era o espetáculo na sua forma mais genuína, a promessa de que qualquer pessoa podia mudar a sua vida em frente a milhões de espectadores.

Hoje, os grandes palcos coexistem com os ecrãs mais pequenos. A música pode nascer num quarto, ser carregada para o digital e, em poucas horas, correr o mundo. Mas ser artista já não é apenas criar: é também ser estratega digital. A arte continua no centro, mas gira em torno de métricas, algoritmos e audiências segmentadas. Nem sempre é a melhor canção que ganha visibilidade. Por isso, muitos músicos recorrem à disciplina, à consistência e à proximidade com a comunidade como forma de manter autenticidade e liberdade criativa.

O streaming trouxe benefícios inegáveis: mais acesso, mais dados, mais possibilidades de distribuição. Mas trouxe também a pressão invisível de criar músicas que “funcionam” na plataforma: refrões mais rápidos, canções mais curtas, letras virais. O risco é a música tornar-se produto em vez de expressão. A solução pode estar na curadoria, não em alinhar sons iguais, mas em escolher canções que contem uma história, que surpreendam e criem sentido para quem as ouve. Porque, no fim, o que nos prende não é a quantidade de canções que ouvimos, mas a alma por trás da escolha. E talvez o maior desafio, hoje, seja mesmo para os músicos: resistir à tentação de compor apenas para agradar ao algoritmo e continuar a criar para emocionar. Porque é nessa verdade que a música encontra a sua força, tocando-nos onde mais importa: no coração.