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Crónicas

Foi, é e será sempre por paixão

De cabelos longos em caracóis que se enrolavam em canudos, saias que dançavam com o vento e um sorriso curioso sempre pronto, carregava comigo a urgência de descobrir o mundo. Um dia, a redação da revista Surf Portugal instalou-se ao lado da minha casa. O coração disparou. Adorava surf, e aquele acaso parecia um sinal.

Bati à porta sem hesitar. Na receção, uma rapariga de cabelos e olhos escuros olhou-me com estranheza, como quem pensa: “enganou-se na porta”. Já eu, de sorriso rasgado e borboletas no estômago disse-lhe:

- Bom dia, sou a Rita Aleluia e quero ser jornalista. Posso falar com o diretor da revista, se faz favor?

Tinha 16 anos e uma certeza inabalável: ia ser jornalista para ajudar a tornar o mundo num lugar melhor.

Nunca me esqueci do olhar do diretor, João Valente. Recebeu-me com um sorriso cúmplice e disse:

- Precisamos de alguém que leia e corrija os textos que escrevemos. Temos muitos especialistas brasileiros a colaborar com a revista. Queres começar com esse trabalho?

O meu coração disparou. Aceitei de imediato. Eu ainda não estava em mim.

- Sim, sim, quero! - Respondi, quase sem fôlego.

O João soltou uma gargalhada breve, calorosa, e rematou:

- Bem-vinda, Ritinha.

A generosidade e a ternura com que o João Valente, um dos mais conceituados jornalistas de surf do mundo, me acolheu nesses primeiros passos no jornalismo é algo que jamais esqueci. A prática do igual valor esteve sempre lá. Foi mais do que uma oportunidade: foi um gesto de confiança. E essa confiança moldou a forma como vivo a minha profissão até hoje.

Aprendi cedo que dar nome à voz dos demais começa por alguém acreditar em nós. E é essa mesma generosidade, esse mesmo olhar de acolhimento, essa empatia, que incorporto comigo e entrego em cada entrevista, em cada história contada, em cada linha que escrevo.

Segui o meu percurso académico em ciências da comunicação – jornalismo. Em paralelo, fui somando experiência em jornais locais. Na universidade co-criei a UNI TV e fiz rádio. No quinto e último ano da universidade, um dos meus professores chamou-me e lançou-me o desafio: fazer um estágio profissional no CNL (Canal de Notícias de Lisboa) o primeiro canal de cabo em Portugal, inteiramente dedicado à informação.

Aceitei sem pestanejar. Estagiei. E fiquei.

Foi ali que aprendi a respiração da televisão: o frenesim da redação, a urgência do direto, a responsabilidade de transformar factos em notícias. Cada dia era um mergulho profundo num mar de histórias que precisavam de ser contadas com urgência. Não mais parei. Seguiu-se a RTP, a TV Ciência, a SIC (já na Madeira) e o Notícias da Madeira (onde fui editora de economia).

A notícia corria-me nas veias, o jornalismo era o meu lugar natural. (Quando a minha filha completou três anos e meio, escolhi fazer uma pausa consciente, uma decisão rara neste meio frenético. Troquei o ritmo acelerado da redação pela minha relação com a minha primogénita. Sai de Portugal, fui estudar neurolinguística, neurociência e iniciei a criação da Parentalidade Generativa. Pelo caminho voltei a ser mãe e esqueci-me de entregar a carteira profissional de jornalista (na CCPJ), uma falha que apagou o meu número do sistema e me obrigou a solictar uma nova, agora com um número muito mais atual. É uma espécie de nova vida nesta missão… tem sentido). Pensei que tinha saído do jornalismo. Mas o jornalismo nunca saiu de mim, e nunca sairá. Mesmo que eu escolha novamente outro rumo.

A pausa que fiz foi reflectida, sentida, vivida. Transformou-me, acrescentou-me e ensinou-me a escutar, a comunicar ainda melhor. Devolveu-me com mais propósito.

Mas essa é uma história que guardo para outro momento.

Regressei ao ativo já lá vão quase quatro anos, depois de um convite inesperado. Assim que o ouvi, o meu coração gritou: “sim, aceita!”. Fiz as malas e voltei à Madeira, onde já tinha sido tão feliz. E é daqui que sigo para o mundo. Com a CNN Portugal/ TVI continuo a ser jornalista. A contar histórias com significado. Que importam.

Já com a neurolinguística nas veias, vivo com a consciência de que cada palavra que digo, cada imagem que escolho mostrar, tem o poder de amplificar ou de silenciar. A câmara é uma janela aberta para o mundo, mas também um espelho que me devolve, todos os dias, a responsabilidade do que mostro e como mostro.

O jornalista, pelo peso que carrega, pela imprevisibilidade e urgência da notícia, pela precariedade do ofício e pela consciência permanente de que tudo será exposto ao olhar público, é um dos profissionais mais vulnerável a desafios de saúde mental. Se nos ‘distrairmos’, começamos a viver num estado constante de ansiedade, incerteza e exaustão, marcas que, a médio e a longo prazo, deixam cicatrizes profundas. É uma profissão que exige, de facto, muita paixão.

E nesta viagem a minha missão não é falar de mim. É sobretudo, devolver voz a quem tantas vezes é silenciado. Voz às vítimas, aos esquecidos, aos que ficaram na sombra. Mas também aos que ofendem, aos que agridem. Porque somos todos humanos e é preciso perceber as várias dimensões de uma história. Só assim ajudaremos a mudar o curso da história. Só assim aprenderemos, em sociedade, a co-criar um mundo mais justo e inclusivo para todos.

No estúdio ou no terreno, o meu dever é escutá-los, a todos, com curiosidade e empatia, contar as suas histórias com ética e rigor, e resistir ao desafio de transformar a dor em espetáculo.

Na televisão, cada palavra pesa. Cada silêncio também. Não há espaço para julgamentos, esses pertencem à justiça. A mim cabe-me informar com a maior precisão possível.

Mas o jornalismo não é neutralidade indiferente. É, antes de mais, um compromisso com a verdade. É sobre saber manter o distanciamento, a isenção e aplicar o contraditório.

Amplificar a voz de uma vítima não é condenar um suspeito. É reconhecer que quem nos lê, ouve ou vê tem direito a informação limpa: sem truques, sem distorções, omissões e generalizações, sem o barulho fácil da opinião disfarçada de factos (cada vez mais desafiante de confirmar num mundo pautado pela IA). Só assim se constrói confiança. Porque a credibilidade não se improvisa, conquista-se, todos os dias, no rigor e na ética. Há momentos em que a neutralidade não é virtude, é cumplicidade. Fingir que todos os lados valem o mesmo é trair o princípio da objetividade. Porque ser objetivo não é nivelar tudo; é escutar cada voz, dar espaço a cada parte, mas nunca abdicar da verdade.

Na era em que demasiados se autoproclamam narradores da realidade, o jornalista tem obrigatoriamente que ter carteira profissional. Até porque: jornalista é aquele que exerce, como ocupação principal, permanente e remunerada, com capacidade editorial, funções de pesquisa, recolha, selecção e tratamento de factos, notícias ou opiniões, através de texto, imagem ou som, destinados a divulgação, com fins informativos, pela imprensa, por agência noticiosa, pela rádio, pela televisão ou por qualquer outro meio electrónico de difusão. E o código deontológico, exige-nos um uma conduta praticamente imaculada.

Ser jornalista, para mim, é servir. Servir a sociedade, trazendo ao espaço público aquilo que precisa de ser visto, ouvido, iluminado. Servir as vítimas, garantindo que a sua dor não se dissolve em estatísticas frias. Servir a verdade, mesmo, ou sobretudo, quando ela incomoda. Não é por acaso que George Orwell definiu o jornalismo como o acto de contar aquilo que alguém não quer ver contado.

Carrego essa responsabilidade todos os dias. Sei que não estou só quando entro em direto, quando faço uma reportagem: comigo vão as vozes, as histórias e as vidas de quem confiou em mim. Do outro lado, estão milhares de pessoas. Destas, muitas passaram, ou estão a passar pelas mesmas histórias. E antes de entrar casas dentro sem pedir permissão, pergunto-me: “E se este direto/ reportagem fosse sobre mim, ou sobre os meus? Gostaria que fosse contado e mostrado assim? Vai ajudar o todo?”

Ser jornalista é uma missão. Ser mulher e mãe não me afasta desta missão, pelo contrário, torna-a mais urgente, mais humana, mais real. É por isso que afirmo, sem hesitação: o jornalismo é uma das missões mais nobres e mais bonitas da minha vida.