A aparente mudança
Finge-se uma nova era que em nada difere daquela em que a memória curta foi fatal
Asseguram-nos que os madeirenses estão mudados. E não é só por, estranhamente, alguns conviverem mal com os turistas, por sinal, seus semelhantes que quase tudo lhes deram, ou por serem mais voyeuristas do que antes ou por denotarem uma preocupante inveja sem precedentes. Estão mudados porque alegadamente têm mais mundo e estudos, questionam melhor e de forma frequente, acusam com provas ou denunciam sem pruridos, não se conformam com os mínimos aceitáveis nem se calam com as benesses do sistema e recorrem sem pudor às plataformas onde exibem a ingratidão com vaidade e presunção.
Mas será que estão mesmo mudados, apesar de tendencialmente votarem como sempre, manterem tradições discutíveis, de não dispensarem foguetes nos arraiais, de acharem que a arrogância é um dom e que uma bebedeira é sinal de maturidade e de terem complexos de pequenez futebolística, pois precisam quase sempre de um ‘clube grande’ já que o da terra não lhes chega? Estão mesmo mudados ou alguém faz crer que sim porque há mais dinheiro no bolso, porque comprovadamente o rendimento dos residentes teve aumentos reais efectivos, porque viajam como nunca e porque os sinais exteriores de riqueza são indisfarçáveis?
Mudaram ou agora fazem-se notar com outra exuberância, tanto nas brigas de vizinhos como nos ajustes de contas profissionais? Mudaram ou agora vestem sem medo a camisola que lhes irrita a pele, mas que pode dar asas ao sonho político que o partido de nascença já não garante? Mudaram ou sofrem bem mais ruidosamente por antecipação, dando como certas meras hipóteses, não distinguindo factos de narrativas, a verdade da intriga e a inteligência da artificialidade? Mudaram ou apanharam boleia da democratização da informação que os colocou sem custo na agenda mediática?
A semana produziu conteúdos mais do que suficientes que contrariam a tese da mudança em curso. Por muitas divergências e reparos que as paralisações possam gerar, um madeirense mudado mais do que enfatizar prejuízos a vários níveis decorrentes do legítimo direito à greve no Centro de Abate da Madeira, nas empresas de autocarros ou nos serviços de saúde apresentaria soluções e ideias que habitualmente entende que deve ser o reles Estado a assumir. Por muito míseros que sejam os habituais comentários, abordando o turismo com massa ou a escassez de talento insular, um madeirense mudado pediria contas aos políticos que ajudou a eleger em vez de entreter-se com delírios vazios de propostas ou ornamentados com falsidades. Por muito que custe, um madeirense mudado não se conformaria em ver Portugal a arder.
Mudar é adoptar consistentemente novas posturas. Não é juntar ódio ao discurso extremista. Não é estigmatizar quem nos vem ajudar. Não é humilhar quem pelas suas limitações não consegue dar mais. É fazer opções que podem acabar com interesses instalados. É perceber que todos são necessários com o seu saber e estilo na era da qualidade. É respeitar a diversidade, das opiniões às vivências. É fazer mais pelo que é nosso. Com propriedade, rigor e honestidade.