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Entre o desencanto e a lealdade

Na política, pertencer a um partido afigura-se algo imutável. Mais, mudar de partido é visto, por muitos, como traição. Como se as ideias fossem propriedade privada, um contrato sem possibilidade de denúncia.

E se for ao contrário? Se for preciso coragem para admitir que um militante já não se reconhece nas decisões, atos e ações dos líderes?

Fazendo uma analogia, as pessoas mudam de partido como quem muda de casa, por necessidade, por desconforto, ou porque a casa antiga deixou de ter janelas abertas.

E nesta mudança, há sempre caixas que ficam para trás, cheias de memórias, de companheiros de estrada, de convicções que um dia pareceram inabaláveis.

Essa realidade torna-se ainda mais visível nas Autárquicas. Mais do que em outras eleições, são eleições de proximidade, em que as pessoas têm nome e história, são o rosto de proximidades e afetos. E escolher presidentes de Câmaras e de Juntas, embora seja um ato moldado pela razão, também é toldado pelo coração.

Nestes tempos estranhos em que vivemos, vemos, com estupefação e apreensão, como os partidos que historicamente fundaram a democracia portuguesa parecem ter perdido a bússola. Entre promessas incumpridas e prioridades discutíveis, cresce o desencanto. Um desencanto ainda silencioso, mas daqueles que afastam as pessoas das urnas. E o silêncio é perigoso, porque deixa espaço para os extremos que, com soluções demagógicas, simples e rápidas, encantam um povo ainda adormecido.

Em tempos de incertezas e de desvarios políticos, reconhecer qualidades em alguém que não é “do nosso partido” parece quase uma heresia, quando deveria ser encarado como sinal de maturidade democrática. Quem o faz é acusado de tudo, sendo o mais suave de ser um “vira-casacas”, quando muitas vezes significa somente colocar o bem comum acima do interesse partidário.

Reconhecer o mérito alheio é ter a capacidade de ver para lá das siglas, de exigir mais dos partidos e menos fidelidade cega. Temos de ter a capacidade de usar o nosso voto para premiar quem constrói e tem soluções que zelam pelo interesse coletivo e afastar quem se esqueceu para quem governa.

No entanto, eu ainda acredito no meu partido. Talvez não no rumo que agora segue, talvez não em algumas escolhas que nos afastam das pessoas, mas acredito no papel que pode, e deve, desempenhar para servir o bem comum. Sempre fui leal ao meu partido, não por hábito ou comodidade, mas porque reconheci na sua génese, nos princípios e valores defendidos pelos seus fundadores, de que destaco Francisco Sá Carneiro, o caminho que queria trilhar na política.

Nos últimos tempos, porém, tenho sentido que o rumo traçado afasta-nos das pessoas. Não é só uma questão de políticas ou programas, é a distância quase invisível, mas real, que cresce entre quem decide e quem vive as consequências dessas decisões. Ao mesmo tempo, acentua-se o fosso face aos militantes de base, esquecendo que é nas bases que reside e persiste a essência dos valores da social-democracia. Um partido que não ouve as bases corre o risco de perder o norte, pois é nelas que está a verdadeira força. As bases do partido precisam de voltar a ter voz e vez, pois representam a diversidade de sensibilidades, de experiências e de sonhos que devem caber sob o mesmo teto político.

Sei que não estou só. Há muitos como eu, que não abandonaram o partido, mas que olham para ele com um olhar exigente. Não é traição apontar falhas. Pelo contrário, é um ato de lealdade querer que volte a ser o que já foi e, sobretudo, o que ainda pode ser de diferente e melhor para os madeirenses e porto-santenses.

O desencanto não tem de ser um ponto final. Pode ser vírgula, pausa necessária antes de voltar a acreditar. Pois a história mostra-nos que a democracia não vive apenas de quem governa, mas também de quem, mesmo desiludido, não desiste de participar. Porque, no fundo, ainda acredito que vale a pena lutar, e votar, por aquilo que nos deve unir: a justiça social, a defesa da liberdade e o respeito pela dignidade humana.

Embora amplamente repetida, não deixa de ser pertinente relembrar a frase de Sá Carneiro: “A política sem risco é uma chatice, mas sem ética é uma vergonha.”.

Que nunca nos falte a coragem de lutar pelo que é certo.