Passadas quentes
Na semana passada fui à Bordal comprar um presente e tive a sorte de ser convidada aos bastidores da arte.
Desde a contagem de pontos, à picotagem, à estampagem com anil, ao bordado, à passagem a ferro. Sara no país das maravilhas!
Entretanto, não fosse D. Lina me prender ao chão qual fio de joeira, a minha memória voou embalada pela brisa do ar expelido em suspiro pelas passadas das minhas ascendentes que com dedos picotados e calejados, desbravavam o linho um ponto corda, uma cavaca, um Richelieu de cada vez, sentadas nos degraus de cimento aquecidos por um dia de sol e de dores nas arcas, ao som da rádio do cambado, ou da menina.
E eu a ver. Ainda aprendi um ponto ou outro, mas não o suficiente, os prazos de entrega não permitiam ensinar uma buzica que sabiam, antemão, não seguiria a arte profissionalmente.
O gosto ficou. O meu vestido de casamento foi bordado, o de batismo do meu filho também. O seu enxoval, oferecido pela avó, tinha até cueca bordada e porta chucha. Quando o bebé passou para o berço, mandei bordar lençóis e edredons, colchas e toalhas, que não consegui colocar no uso, estão no mesmo saco de onde vieram.
Os lençóis bordados, as toalhas oferecidas pela minha mãe para compor um enxoval à maneira duma menina madeirense… usadas apenas após a celebração do casamento, estão guardadas religiosamente junto aos rolos de linho herdados de ambas as avós. Aliás, a única coisa saída das mãos da minha avó paterna, que consigo tocar.
O paninho bordado pela mãe da minha mãe está emoldurado. O lencinho de seda pura em ponto sombra duma tia avó falecida ainda na adolescência, cujo resultado foi rejeitado pela casa de bordados por ter um pontinho manchado está guardado como símbolo do sacrifício e também, exploração das casas de bordados às artistas, neste caso, nos anos 60.
A toalha de alguidar em linho semeado, colhido, tecido e bordado pela minha bisavó Maria da Silva dos Santos, lavada, pasme-se, na máquina de lavar, a 60 graus, levando na água germes ancestrais, vetustos e quiçá fossilizados, saiu perfeita para limpar a testa de seu trineto João, quando recebeu o primeiro Sacramento, num legado secular, que prometo honrar. Ponto a ponto.
E que sorte eu tive em crescer no campo nos anos 80.