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Crónicas

Uma jóia de rapariga

Ao toque de saída, quando todos corriam para a porta, íamos para casa sonhar em ser melhores, mais magros, sem borbulhas, mais morenos e confiantes

Todas as tardes o senhor José, o ‘Folha’, com o seu molho de ervas às costas, cruzava-se com as mulheres novas, de roupa à moda e permanente, que desciam do autocarro na paragem antes da curva. E ali, no meio do caminho e por um instante, o mundo antigo do Laranjal partilhava o espaço com o ar novo que chegava da cidade e entrava pela televisão. A vida, pelo menos a minha vida, era feita destes dois mundos, de tudo o que traziam e dos conflitos que produziam, numa guerra que era também de gerações.

Ali, num lugar onde o dinheiro não abundava, as raparigas começavam cedo a sonhar com um noivo, enquanto tratavam do dote e de aprender todas as artes femininas. As mães queriam que fossem bonitas, mas não muito vistosas, que soubessem cozinhar e arrumar a casa e quem conseguisse ser isso tudo não podia ser outra coisa que não uma jóia de rapariga. Também era importante que somasse o recato, que evitasse ser falada e não tivesse fama de leviana.

Mas estávamos nos anos 80 e até no Laranjal era difícil manter este padrão e por várias razões. As adolescentes tinham crescido noutro ambiente, sonhavam com um amor igualzinho ao das telenovelas, que fosse romântico e para isso era preciso ter coração, saber arrumar a casa podia ficar para depois. E também queriam ser bonitas como as mulheres dos anúncios de fatos de banho e bronzeadores que enchiam as revistas de papel lustroso que a minha prima Ana comprava antes do Verão.

Eu, e todas as outras que sentavam nos bancos do anexo do Girassol no intervalo das aulas e iam comer um bolo à Penha de Águia a meio da tarde, esperavam um dia, quem sabe por milagre, ser tão esguias e tão morenas como as modelos da publicidade, ter um cabelo farto e umas pernas magras. O ideal já era difícil, mesmo antes do Tik Tok e do Instagram. Pelo menos para mim, que carregava o peso às costas e sofria nos provadores das lojas para passar as calças de ganga pelas ancas e apertar o botão sem suster a respiração.

E não conseguia evitar um certo despeito por não ser como aquelas miúdas que pairavam acima de nós, mortais imperfeitos, com as suas roupas bonitas, e como seguiam pelos corredores da escola com a leveza de ter a cara certa e o corpo certo. A elas ninguém perguntava se sabiam cozinhar, arrumar a casa ou bordar. Todos imaginavam que viviam um amor igualzinho aos romances; até se conheciam os namorados e se sabia detalhes das histórias. Atrás delas, ficava sempre um rasto de admiradores. Os rapazes suspiravam por elas; as raparigas queriam ser como elas.

Ao toque de saída, quando todos corriam para a porta, íamos para casa sonhar em ser melhores, mais magros, sem borbulhas, mais morenos e confiantes na esperança de alcançar uma vida melhor daquela que tínhamos. A mim pesava ainda mais sentir que não era nem o ideal da escola, nem o de casa, no Laranjal, os das meninas que sabiam tudo das artes femininas. Eu, na verdade, era como aquele instante em que o senhor José, o Folha, com um molho de ervas às costas e seguido por vários cães, se cruzava com as mulheres novas e bonitas que desciam na paragem do autocarro na paragem antes da curva.

Era, e acho que ainda sou, esse encontro desajeitado entre o mundo antigo, essa herança de família e as coisas modernas que os anos 80 deram à minha geração. E o resultado não foi o de “uma jóia de rapariga”.