Entre a Sátira e o Silêncio: Humor em Tempos de Hipervigilância
A liberdade para fazer humor, tal como a concebemos nas sociedades democráticas contemporâneas, encontra-se, porventura, num estado de tensão crítica. Não estará, necessariamente, em risco no sentido jurídico-formal, mas parece enfrentar crescentes constrangimentos no plano cultural, simbólico e mediático, sobretudo devido à reconfiguração das sensibilidades coletivas, à intensificação da moralização
dos discursos e à ascensão de formas de (hiper)vigilância horizontal nas redes sociais.
Trata-se de uma tensão entre o princípio da liberdade de expressão e a nova sensibilidade discursiva, onde o humor já não é sempre lido como dispositivo ambíguo, mas como possível ato de violência simbólica.
Historicamente, o humor − e em particular a sátira − tem desempenhado funções sociais e simbólicas cruciais. Nas sociedades tradicionais, o riso foi frequentemente investido de um poder liminar e ritual: bastaria evocar o papel carnavalesco da sátira na Idade Média, onde a ordem social era temporariamente subvertida através da paródia, da inversão hierárquica e do grotesco. A sátira permitia uma “licença simbólica” para dizer o que, noutras circunstâncias, seria interdito, funcionando como válvula de escape e como crítica oblíqua à autoridade. O bobo da corte, figura paradigmática deste regime simbólico, dizia verdades incómodas sob o manto do riso, justamente porque o humor oferecia um espaço de suspensão, uma zona franca de enunciação.
Com o advento da modernidade e da esfera pública burguesa, o humor adquire novas configurações. Torna-se uma ferramenta de crítica social e política (como o demonstra a longa tradição do cartoon e da crónica satírica). A sua função passa a ser não apenas a de entreter, mas também a de expor o ridículo, contradições, questionar poderes instituídos, revelar hipocrisias sociais. A sátira, nesse contexto, opera como dispositivo de resistência simbólica, ou seja, como forma de pensamento divergente que desafia o consenso normativo.
Hoje, no entanto, essa tradição crítica parece ser confrontada com novos limites. A crescente sensibilidade pública às questões identitárias, a maior consciência das microviolências simbólicas, bem como a lógica performativa e reputacional das redes digitais, levam a uma reinterpretação do humor sob o crivo da ofensa. O que outrora era aceite como caricatura ou hipérbole interpretativa é, por vezes, hoje lido como ataque literal e ilegítimo. Isto não se deve apenas a uma suposta “fragilidade” social, mas à mutação do próprio espaço público, que se tornou um palco permanentemente exposto à avaliação moral de públicos múltiplos e emocionalmente investidos. A natureza performativa e não mediada do digital favorece a leitura descontextualizada e a reação impulsiva − duas forças corrosivas para a ambiguidade essencial do humor.
Dito isto, importa distinguir entre censura e crítica. A interpelação crítica − ainda que severa ou mordaz − dirigida a um objeto humorístico inscreve-se no horizonte pluralista do debate democrático, enquanto expressão legítima da divergência interpretativa e do confronto valorativo. Torna-se, contudo, problemática quando essa crítica transita de um regime argumentativo para uma dinâmica punitiva, cristalizando-se em formas de silenciamento simbólico ou coação institucional desproporcionada. Nesse deslizamento, o espaço público degrada-se de instância de confronto racional em dispositivo disciplinar, submetendo a liberdade de expressão à lógica coerciva da normatividade moral emergente.
O espaço de liberdade do humor estará, hoje, sujeito a novas negociações simbólicas, num ecossistema mediático onde as palavras circulam sem mediação e onde a empatia identitária pode colidir com o espírito irreverente, corrosivo e desestabilizador da sátira. Preservar o lugar crítico do humor exigirá, pois, uma defesa da ambiguidade, uma pedagogia da ironia e uma maior maturidade dialógica por parte do público, sob pena de o espaço simbólico do riso se retrair, cedendo à lógica binária da ofensa e da reverência subserviente.
Emanuel Barbeitos