O sonho e a realidade
Regressando anteontem do Continente, dum júri do concurso de piano internacional que abrangeu jovens participantes dos 5-6 até aos 32 anos, senti a necessidade de resumir numa reflexão o teor das conversas que tive com alguns dos meus ilustres colegas do júri, sobre o microcosmo que este concurso demonstrou em relação à situação geral com a educação dos jovens pianistas em Portugal e que é, porventura, extensível aos alunos de música no sentido mais lato, e, de certa maneira, aos alunos no sistema escolar geral.
Não há maior prazer do que ouvir, e ver, crianças que genuinamente se entusiasmam com a música, numa idade que ainda precede a inibição e dúvida e em que não são efetuadas críticas daquelas que podem resultar numa vulnerabilidade permanente. A espontaneidade e a comunicação demonstram a natureza imediata duma criança que, quando gosta, não tem problema em transmitir este gosto, e, também, o conteúdo da música.
A situação começa a alterar-se já por volta de 10 anos de idade, quando o sistema escolar começa a impor certas metas com prazos preestabelecidos. A espontaneidade começa a ser substituída pelo sentido de obrigação e responsabilidade. Se o sistema os tornar em parâmetros preponderantes do progresso, agora medido pelas provas, não é de estranhar que o espaço para a espontaneidade começa de reduzir. Quando o aspeto lúdico começa a desaparecer da aprendizagem, começa a prevalecer o sentido de trabalho, associado à rotina, hábitos regulares e organização do tempo.
Já numa faixa de 12-13 anos de idade, com o desenvolvimento pessoal e a introdução de todas as variáveis que, eventualmente, vão esculpir um adolescente e, a seguir, um adulto, os jovens, hoje em dia, começam a demonstrar dificuldades, na abordagem da música, cuja origem não reside apenas nas complexidades da idade em si.
É natural, e profundamente humano, um professor investir muito de si próprio no crescimento artístico e musical do seu aluno. Aulas de instrumento são um processo “um a um”, em que é praticamente inevitável o desenvolvimento de alguns laços emocionais, sobretudo quando o aluno responde positivamente e mostra ser investido no seu próprio crescimento e superação de múltiplos obstáculos que está a enfrentar neste caminho. É natural querer ver este aluno desenvolver o seu dom ao máximo e poder demonstrá-lo em público. E, conforme o repertório se torna cada vez mais exigente, é natural exigir cada vez mais do seu aluno. Até que…
Até se perder a perspetiva e a ambição se começar a confundir com a realidade. E a realidade de hoje de longe não é a realidade nem de 20 anos atrás, e quanto menos de uma ou mais gerações atrás.
Todos temos a consciência das distrações efetuadas pelas vidas social e digital, as quais parece que não existiam ainda ontem. E sabemos até que ponto, os jovens, consequentemente, se tornaram mais distraídos, vulneráveis e perdidos na atualidade. Que diferença se instalou quanto ao poder de concentração, e da sua duração. Hoje em dia, talvez a duração dum “reel” no Tiktok?
E isso tem as suas consequências. Os jovens conhecem cada vez menos do passado ilustre da música clássica, desconhecem as autoridades na interpretação de certos estilos e compositores de uns meros 20-30 anos atrás, ouvem a primeira coisa que lhes calhe no YouTube e consideram isso a autoridade e o exemplo a seguir na sua aprendizagem.
Na verdade, parece que os professores ficam algo perdidos, entre a mudança do paradigma do perfil dum aluno em geral (e um aluno de música e de piano, mais especificamente), e a mudança do paradigma do “tempo” (o que há umas décadas atrás significava meses de trabalho, agora, com a falta da paciência e do poder da concentração, ou se faz rápida e superficialmente, ou não se faz de todo). Colocam metas e objetivos que hoje em dia precisam de considerações diferentes. Infelizmente, há processos que não se podem contornar – nem os jovens nem os seus professores, por muito que quisessem chegar aos patamares elevados, não irão chegar a resultados de qualidade se ignorarem a importância do tempo que estes processos levam. E nesse processo continua a ser de máxima importância que os seus professores lhes iluminassem o caminho, escolhendo exemplos ilustres do passado, e demonstrando, eles próprios (ao instrumento), tudo aquilo que pretendem transmitir, baseando-se em tudo aquilo que, sendo docentes de responsabilidade, deviam já dominar e poder. Quanto mais avançado o aluno, mais importante este processo se torna. E nem sempre está a ser cumprido.