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Crónicas

A fazenda e os dias quentes

O rumor da água também queria dizer que faltava pouco para me libertar da ansiedade dos pontos e da escola

A água a correr na levada, mesmo por detrás da casa, anunciava o calor e, daí em diante e até voltar a chuva, as fazendas, aqueles pedaços de terra, onde se avistava estacas e hastes de feijão, seriam regados com o que havia e com o caía dentro dos poços. O rumor da água também queria dizer que faltava pouco para me libertar da ansiedade dos pontos e da escola. Os três meses de férias estavam a chegar e eu sonhava com o ‘banho’, que era como o povo do Laranjal designava a praia e a beira-mar.

As pessoas que, nos dias de calor, enchiam o autocarro com o cabelo a cheirar a lavado e exibiam um escaldão nos ombros vinham do ‘banho’. E as que, como eu, desciam os degraus da entrada logo de manhã, ainda pela fresca, com a toalha e o biquíni dentro da mochila, iam ao ‘banho’. A actividade não era bem vista em todas as casas que, a bem dizer, não se podia ir nadar e apanhar sol com roupa e não parecia bem andar assim quase despida à vista de gente.

A minha mãe e as minhas tias - que só iam ao mar molhar os pés quando a excursão da paróquia parava em Machico - devem ter resolvido o assunto cedo, acho que no tempo da minha prima. É certo que por ser um lugar pequeno e conservador, de pessoas de respeito, que iam ao domingo à missa e tinham dúvidas sobre isso de ir ao banho, a minha mãe teve de encontrar uma razão, daquelas à prova de moralistas e de grande valor a meio dos anos 80.

A pequena ia à praia por ser bom para os ossos, para não ficar como as tias, que andavam nos doutores por causa do reumatismo, que a vitamina D só fazia bem, tinha ouvido dizer tudo isso nos programas de rádio que lhe enchiam as manhãs e as tardes, enquanto bordava. E também não queria que fosse diferente dos outros, das centenas de adolescentes que, com a entrada jovem, enchiam o Lido todos os dias durante as férias grandes. E o seu marido deixa?

O meu pai, que volta em meia discutia o giro da água com a foice em cima do ombro na levada, era um homem difícil e não ajudava ter um metro e 80 e os ombros largos do trabalho nas obras. O que a vizinhança não sabia era que, debaixo daquele temperamento que às vezes chegava à ira, estava um pai justo que, antes de tudo, gostava de nos ver felizes. E, embora fosse o último reduto da autoridade, confiava na minha mãe para tudo. Se ela dizia que era bom, ele assinava por baixo e ia tratar de assuntos que o interessavam mais.

E vigiar o giro da água do Poço das Freiras - que era de onde vinha as horas de água para fazenda do meu avô - era melhor maneira de ocupar o tempo quando a vida de pedreiro lhe dava folga do que perder tempo a saber o tamanho das minhas saias ou do meu cabelo ou a proibir o ‘banho’. Todos os anos, durante o Verão, o meu pai desentupia a levada, regava, ajudava a plantar, consertava muros e, para tirar dúvidas, pedia à minha tia Teresa para saber a ordem dos heréus, essa palavra tão antiga que designava os co-proprietários da água que regava todos aqueles pedaços de terra que eu avistava da paragem, enquanto esperava pelo autocarro.