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Entre Géneros e Rótulos: A Humanidade Esquecida

Nas últimas Jornadas de Saúde Mental, celebrando os 100 anos da presença das Irmãs Hospitaleiras na região, a Casa de Saúde Câmara Pestana proporcionou, além de um espetáculo fantástico, um dia repleto de conferências inspiradoras.

Num painel de excelência, com o Dr. Nelson Olim, a Dra. Joana Vieira e a Dra. Frederica Passos, senti que estamos, de facto, a caminhar para uma nova urgência: a necessidade do encontro com o outro.

Falar do Nelson é falar de alguém que admiro. Qualquer elogio poderá parecer excessivo — mas não é. A Dra. Joana abordou um tema inquietante: a dependência sem substância. Como pai, preocupou-me e deixou-me com a pulga atrás da orelha.

Já a Dra. Frederica falou sobre transexualidade. A sua alocução foi distinta e impactante. Numa sociedade em que todos debatem constantemente o certo e o errado, em que a ampulheta oscila entre extremos sem nunca se fixar no equilíbrio vertical, dei por mim a refletir sobre no que nos estamos a transformar. Entre o meu certo e o teu errado, onde está o ponto comum?

No que toca à identidade de género, acredito que, por causa de alguns excessos e dos dogmas herdados — quase inquisitoriais —, muitos debates têm sido contaminados. Daí surgiu esta reflexão. Não como crítica, mas como análise a algo que, por vezes, parece ser tratado como uma moda ocidental.

Esse tratamento revela, contudo, uma profunda ignorância sobre a diversidade do mundo global em que vivemos e representa um afastamento da mais simples e basilar regra de vida em sociedade: o respeito pelo outro.

Por vezes, parece que o debate sobre identidade de género surgiu ontem, importado das redes sociais ou de tendências anglófonas. Mas a verdade é bem diferente: a fluidez de género é tão antiga quanto a própria humanidade.

Em Samoa, há séculos existem os fa’afafine, pessoas biologicamente masculinas que desempenham papéis tradicionalmente femininos. Não só existem como são respeitados e integrados socialmente. A sua identidade não é tema de debate político nem de campanhas ideológicas — é uma realidade vivida e aceite. Noutro lado distante, na Tailândia, os kathoey (popularmente conhecidos como ladyboys) fazem parte do tecido social: no comércio, no entretenimento e até na vida religiosa. Apesar de ainda enfrentarem preconceitos e ausência de direitos formais, estão longe de ser tratados como aberrações. São reconhecidos culturalmente como um terceiro género, mesmo que a legislação ainda não acompanhe essa realidade.

Se recuarmos no tempo, encontramos figuras como o imperador romano Heliogábalo século II, que pedia para ser tratado no feminino, ou os two-spirits dos povos indígenas da América do Norte — pessoas que incorporavam o masculino e o feminino, frequentemente com papéis espirituais de grande prestígio.

Portanto, a existência de pessoas trans ou não-binárias não é uma invenção moderna. O que é moderno — e, muitas vezes, problemático — é a forma como o Ocidente lida com a questão: com uma rigidez ideológica vinda de ambos os lados.

Hoje, o debate em torno do género tornou-se uma verdadeira guerra cultural. De um lado, setores progressistas impõem uma aceitação automática, sob pena de “cancelamento”, uma idiotice. Do outro, discursos conservadores reagem com negação, atacando qualquer expressão de diferença como “ideologia de género” outra idiotice.

E, no meio deste combate, a pessoa desaparece — com a sua história, a sua dor e a sua dignidade.

A essência da convivência não está na obrigação de aceitar tudo, nem na proibição de reconhecer a diversidade. Está no respeito. Não apenas pelo pronome, pelo rótulo ou pela bandeira — mas pelo ser humano.

É isso que tem faltado neste debate: empatia desprovida de cálculo político.

Não temos de concordar com tudo para vivermos em sociedade. Precisamos, sim, de reconhecer no outro alguém como nós. Enquanto continuarmos a transformar identidades em trincheiras, perderemos a oportunidade de construir pontes.

Talvez seja tempo de aprender — ou reaprender — com culturas que lidam há séculos com a diferença sem fazer dela um campo de batalha.

O respeito não é concessão. É um valor essencial numa sociedade que se quer livre, plural e, acima de tudo, humana.

Disse