A Cidade não é um Estádio de futebol
A preparação policial para eventos desportivos de grande dimensão é séria, complexa e exigente. Antes de qualquer evento a Polícia estuda percursos, prevê cenários, monta dispositivos de segurança e faz o melhor que pode com os meios que tem. Mas há limites para o que se pode controlar quando a permissividade continua a imperar sobre o bom senso.
Não é aceitável que claques de adeptos andem pela via pública a lançar foguetes, a fazer disparos de pirotecnia e a detonar baterias mecanizadas, (quando o seu armazenamento e a sua venda por exemplo obedecem a critérios muito rigorosos), como se as cidades fossem um campo de batalha ou um festival pirotécnico. Pelo amor de Deus, acabem com isso. Isto não é paixão, é desrespeito.
Sempre que uma claque atravessa uma cidade em direção a um estádio, tem de ser escoltada por centenas de profissionais da PSP, parando o trânsito, inquietando moradores e colocando todos em sobressalto, ouvimos os mesmos argumentos: é tradição, é paixão, é identidade. E, quando tudo corre bem, os promotores, clubes, dirigentes e os grupos organizados colhem os louros de uma “festa bonita”.
Mas quando corre mal, quando há confrontos, agressões, caos urbano, a culpa, quase automaticamente, recai sobre os mesmos: a polícia. São os profissionais no terreno que são filmados, criticados, responsabilizados. São as forças de segurança que são chamadas a justificar-se, a “ter mais formação”, a “agir com mais contenção”, mesmo quando estão no limite da capacidade e sob enorme pressão. Chega. Basta.
Está na hora de repensar esta prática. Não, não é normal ter de fechar ruas para deixar passar claques. Não é normal viver em sobressalto porque “há jogo hoje”. E não é normal que o desporto, que devia unir, se transforme num ritual de intimidação.
O futebol pode — e deve — continuar a ser uma festa. Mas não em “manada”. Não às custas da liberdade e da tranquilidade dos outros.
Não podemos continuar a aceitar este ciclo vicioso de irresponsabilidade: permitir tudo, facilitar tudo, e depois culpar a polícia quando o previsível acontece. O futebol, enquanto fenómeno social de massas, exige regras claras e limites firmes. E esses limites não podem ser desenhados à conveniência de quem organiza deslocações em grupo para depois se eximir da responsabilidade.
É inconcebível que se continue a permitir — ou a ignorar — este tipo de comportamentos. Quem vai responsabilizar-se quando um foguete atinge uma pessoa, um carro civil ou então um carro da polícia ou uma varanda de uma casa ou de um apartamento? Quando uma bateria explode perto de uma criança? Quando um confronto se inicia porque um grupo quis “afirmar-se” com barulho e fumo?
O policiamento de eventos desportivos não pode continuar a ser uma missão de alto risco mal protegida por regras frouxas. Não pode continuar a ser palco de julgamento público dos profissionais que, dia após dia, são deixados sozinhos entre a multidão e o caos.
A polícia faz o que pode. Prepara-se. Age. Contém. Mas está a lidar com um sistema que tolera o intolerável. Um sistema que só reage quando corre mal, e que, mesmo assim, aponta o dedo aos profissionais no terreno. Não pode continuar assim.
Por isso, lanço um apelo: à hierarquia, que se tenha coragem de emitir pareceres negativos, mesmo quando isso não agrada aos clubes, nem aos municípios e aos políticos; ao legislador, que se avance com medidas legais claras, que proíbam a concentração e pessoas em alturas de jogos, com penas dissuasoras e fiscalização real; à sociedade civil, que deixe de romantizar estas práticas como se fossem “parte do futebol”.
O desporto deve ser vivido com paixão, sim, mas com responsabilidade, civismo e respeito por quem não pediu para estar no meio do barulho, da fumaça e do medo.
A cidade é de todos. A segurança, também. Chega de fechar os olhos. Aos que continuam a fazer de conta que não veem o problema: a omissão também é responsabilidade.