Quem não entender o país, ficará para trás
A ascensão do Chega nas legislativas portuguesas não é um acaso nem uma surpresa. Os sinais acumulavam-se desde 2019. Trata-se, acima de tudo, do reflexo de uma desconexão cada vez mais profunda entre as elites políticas e uma larga franja da população que se sente invisível – emparedada entre uma austeridade disfarçada e um futuro continuamente adiado.
O mapa eleitoral revela vários Portugais. Há o Portugal urbano e mediático, e há o outro – o dos subúrbios e do interior –, onde famílias vivem esmagadas por rendas incomportáveis, transportes imprevisíveis e serviços públicos em erosão. Trata-se de uma classe média periférica que não é suficientemente pobre para beneficiar de apoios, nem suficientemente abastada para escapar à pressão económica. São os pais que não conseguem vaga numa escola pública de qualidade, nem pagar uma privada; reformados que esperam meses por cuidados de saúde; trabalhadores penalizados por uma transição verde para a qual não têm alternativas, guiando carros a gasóleo com décadas.
A degradação do SNS e da escola pública durante a governação PS não foi uma fatalidade – foi resultado de opções políticas. Enquanto se celebravam superavits, profissionais exauridos pediam apenas dignidade. A justiça emperra: processos fiscais e administrativos arrastam-se por anos, paralisando vidas e negócios. O resultado é um Estado que parece mais um obstáculo do que um garante de bem-estar.
Durante anos, evitou-se debater a imigração. Qualquer crítica era recebida com o anátema de xenofobia. Promovido pelo espírito da geringonça, o volume de imigração em curto espaço de tempo – ainda que haja setores onde faz falta – agravou problemas estruturais: sobrecarga escolar, pressão habitacional e sobre o SNS, bairros transformados em enclaves linguísticos e culturais, de moralidades e dinâmicas que requerem tempo e engenho na integração, promovendo o sentimento de menor coesão social. Enquanto o PSD se debatia com a sua identidade, receando tanto a herança de Passos Coelho como o julgamento da agenda mediática dominada pela esquerda “brâmane” – segundo a definição de Thomas Piketty uma elite urbano-cosmopolita, altamente qualificada, pouco tocada pelas dificuldades materiais, e grandes desejos de representação de causas percecionadas como progressistas e sofisticadas –, o PS e os seus aliados agarravam-se a um progressismo moralizante, mais atento aos símbolos do que aos problemas reais, acreditando que o medo ao Chega bastaria para mobilizar o eleitorado. Em França o mesmo foi tentado e resultou no colapso do PS francês.
Mas a herança do Costismo revelou-se tóxica, e Pedro Nuno Santos não teve fôlego para a travessia. Muitos eleitores, desencantados com os escombros da geringonça, voltaram-se para quem, mesmo sem soluções estruturadas, parecia falar do que lhes importa.
André Ventura não é um visionário – é um sintoma. Ganhou terreno porque nomeou o que os outros evitavam. Muitos dos seus eleitores não são extremistas, são cidadãos que, há demasiado tempo, não se sentem ouvidos. Quando dizem “alguém fala por mim”, exprimem uma carência de representação.
A esquerda não falhou apenas na economia e nos serviços públicos. Falhou também culturalmente: na construção de sentido, de pertença, de valores agregadores. E é essa falha que está a ser explorada em todo o Ocidente, com propostas que, apesar de por vezes confusas, fazem muitos cidadãos sentirem que é possível resgatar o bom senso e um conservadorismo responsável, focado no essencial – aquilo que dá coesão e estabilidade à vida comum.
A Aliança Democrática carrega agora o fardo de dar respostas nas políticas públicas e saber conduzir o espírito cultural dos tempos. Se não o fizer com clareza, coragem e visão – se não recentrar a política em torno da justiça, da habitação, da saúde, da segurança, da identidade e dos valores, e a esperança no elevador social continuar a findar-se–, o Chega deixará de ser exceção. Passará a ser norma. Porque quem não entende o país real, acaba por ser ultrapassado por ele.