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Editorial

Nem a brincar

Os resultados das eleições legislativas de ontem não se fazem apenas das somas dos votos que ditam vencedores e vencidos, da aclamação clubística dos feitos e das críticas desenfreadas aos defeitos, das odes aos promissores, dos reparos às humilhações e das ironias aos aziados. Fazem-se também de muitas incertezas que obrigam a pensar em diversas frentes, sem deixar ninguém nas margens da reflexão inadiável interessada em robustecer a democracia. Fazem-se do retrato que exibe uma complexidade severa do momento político que volta a exigir arte e negociação em nome da estabilidade desejada, tarefa hercúlea ante um parlamento fragmentado, resultante de um sem número de tensões latentes no espaço público e da crescente desconfiança de muitos cidadãos face às instituições. Num cenário adverso, torna-se imperativo agir com lucidez, responsabilidade e sentido de Estado. E há felizmente quem já o tenha feito, em claro contraste com os que teimam em prolongar agonias partidárias e pesadelos colectivos apenas porque não querem ver o óbvio.

Quem não quiser “brincar às eleições todos os anos”, como sugeriu ontem Miguel Albuquerque, tem assim muito que fazer, partindo do princípio que a democracia não se esgota no acto eleitoral, patamar sublime da cidadania, mas ultimamente ridicularizado sem piedade e transformado em recreio interminável onde se evidenciam vaidades que nada de relevante resolvem. A legitimidade democrática exige que, após cada eleição, seja incrementada a capacidade de dialogar, de construir soluções e de garantir a governabilidade, sempre com base na vontade popular expressa. A deriva permanente não pode tornar-se norma, apesar dos protagonistas do jogo político apreciarem a táctica de circunstância ou o calculismo assente no curto prazo. Há vidas em jogo, sectores estratégicos à espera de decisões e uma confiança pública que urge reconstruir neste País feito de gente com alma.

É essencial que as lideranças políticas assumam a sua responsabilidade democrática, demitindo-se - como o fez Pedro Nuno Santos - quando percebem que não são solução ou assumindo-se como farol nesta era do apagão ideológico e dos princípios. Isso significa disponibilizar-se para o diálogo, mesmo quando as diferenças ideológicas são profundas. Significa recusar o bloqueio como método e o protesto como fim em si mesmo. Significa servir causas maiores.

Portugal precisa de rumo e de governo. Para isso, o Parlamento tem de ser valorizado como espaço nobre de construção política, mesmo que para alguns não passe de arena em que o confronto é bem mais importante do que o compromisso. Simultaneamente é crucial reforçar a transparência e a pedagogia democráticas. A clareza institucional ajuda a combater a desinformação e a reduzir o ruído que mina a credibilidade dos políticos e a confiança dos cidadãos. Cabe assim a quem decide, de forma serena e sem encenações, explicar os fundamentos das suas decisões, promovendo previsibilidade.

Importa também reflectir sem dramatismo sobre eventuais ajustamentos no sistema político-eleitoral. É tempo de pensar em soluções que incentivem a harmonia, valorizem a proximidade entre eleitos e eleitores e combatam de forma eficaz a abstenção.

Mais do que nunca, é preciso proteger o espaço democrático. Não é tolerável o ataque à Constituição, ao Estado de direito ou aos valores fundamentais. É obrigação de todos, dos partidos aos cidadãos, erguer um edifício ético e cívico contra todas as formas de intolerância e radicalismo.

A democracia portuguesa, mesmo que imperfeita, é um bem demasiado precioso para ser colocado ao nível do entretenimento. Os tempos exigem coragem, diálogo e sentido de futuro. Não basta ganhar eleições. É preciso saber governar e, sobretudo, saber cuidar da democracia que nos trouxe até aqui. Se assim não for feito, os extremismos que geram sobressalto serão prósperos, os populismos espreitarão a cadeira de sonho e os insubstituíveis convictos nada mais terão para oferecer que não seja o caos.