Entre a humildade e a superioridade
Não delegue nos outros o que é seu dever. Vote. Com humildade. E com superioridade. Porque a democracia não se mantém sozinha
Muito se tem dito sobre o dever cívico de votar — uma conquista de há mais de meio século — mas cada vez menos pessoas parecem recordá-lo no momento decisivo de escolher quem nos representa. Os que o fazem, fá-lo-ão, acredito, com redobrada consciência, mesmo se desiludidos com os frutos de uma democracia nascida em Abril de 1974. Afinal, muito do que então se sonhou ficou por cumprir, e não são poucos os que hoje ainda sobrevivem com salários de miséria e pensões de subsistência.
Apesar de tudo, poucos ousarão afirmar que se vivia melhor sob o jugo da ditadura. A liberdade trouxe consigo a mais poderosa arma do cidadão: o voto. A escritora Lídia Jorge definiu-o recentemente com a lucidez que só os grandes pensadores possuem: “O voto é um acto de humildade, porque é um entre milhões. Mas ao mesmo tempo é um acto de grande superioridade.” Numa frase, duas ideias que se tocam sem se anularem, e que dizem tudo sobre esta forma maior de cidadania, num mundo em guerra, mutável e saturado de ruído.
Vivemos num tempo em que toneladas de lixo informativo navegam incessantemente pelo espaço digital. A mesma tecnologia que nos permite aceder ao conhecimento universal é usada para manipular, confundir e distorcer a realidade. Os mais jovens, nativos do ecrã, são os mais vulneráveis: consomem pouco ou nada de informação credível, rejeitam os livros e absorvem, sem filtro, tudo quanto brota do TikTok, Instagram, Telegram e afins. Porque é fácil. Porque dá menos trabalho. Porque pensar custa.
Nesse vazio, muitos partidos e movimentos aproveitam para veicular mensagens simplistas e populistas, com soluções mágicas para problemas complexos. No meio da torrente de slogans e ‘soundbites’, repete-se, eleição após eleição, um padrão preocupante: a desinformação sistemática. Por isso, a verificação de factos não é apenas um exercício jornalístico, é uma necessidade vital da democracia. A liberdade permite que se diga tudo, mas cabe à sociedade civil, ao jornalismo e às instituições escrutinar promessas, desmontar meias-verdades, desmascarar falsidades. Muitas propostas são irrealistas. Outras, perigosas. Um exemplo flagrante: grande parte do que se propaga sobre imigração é falso. Mas, repetido até à exaustão, convence um público mal informado, e faz estragos.
Esta erosão da verdade é hoje um dos maiores perigos para a saúde da democracia, precisamente quando celebramos meio século da sua existência em Portugal. Exige-se, por isso, um esforço colectivo de jornalistas, governos, escolas, empresas e famílias, para recentrar prioridades e reeducar para o pensamento crítico.
Não é difícil perceber o problema: basta uma ida ao café para observar dezenas de rostos colados aos ecrãs, a deslizar ‘reels’, vídeos fúteis, conteúdos manipulados por Inteligência Artificial, desprovidos de rigor, sem exigência cognitiva, meros produtos para entreter sem inquietar. Mais grave ainda: começa a instalar-se a ilusão de que a IA poderá substituir o esforço, o estudo, o trabalho. Como se o êxito se resolvesse por feitiçaria. Urge contrariar esta crença e devolver à educação o seu papel formador, com base na inteligência natural. Ensinar a pensar tornou-se urgente.
Hoje escolhe-se um governo para uma legislatura de contornos incertos. Haverá maioria? Estabilidade? Prevalecerão os extremos?
Não delegue nos outros o que é seu dever. Vote. Com humildade. E com superioridade. Porque a democracia não se mantém sozinha.