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Crónicas

Autonomia Progressiva

1. Autonomia Progressiva

A Madeira, esta terra escorrida a meio caminho entre a paciência e o Atlântico, vive há anos numa espécie de sono institucional, um torpor vagamente aromatizado a cravos de gabinete e a fotocópias amarelecidas do Estatuto Político-Administrativo. A Autonomia, palavra repetida com a solenidade entediante com que se reza um pai-nosso já sem fé, não passa de um adorno retórico colado à lapela de senhores de fato mal cortado, que falam com voz lenta, cheia de pausas pensadas, como se cada sílaba fosse uma dádiva. A Autonomia Contemplativa, chamemos-lhe assim com o desprezo necessário e o cansaço habitual, é um palco sem peça, um altar sem Deus, um nome próprio que já não sabe a quem pertence. E nós, sentados nas bancadas da Assembleia, nos bancos da paróquia, nos degraus da Câmara, vamos aplaudindo devagar, sem convicção, como se bater palmas fosse um acto patriótico ou uma espécie de missa sem sacramentos.

Ninguém governa. Ninguém contesta. Ninguém arrisca. O poder tornou-se um mobiliário de escritório: funcional, imóvel, insípido. Os mesmos nomes, as mesmas caras, as mesmas frases, a mesma pachorra burocrática com que se adiam as coisas até que o tempo as resolva. Mas o tempo não resolve nada. O tempo, quando não se ocupa, corrói. E o que temos é isto: uma ilha corroída por dentro, por um sistema que prefere a imobilidade ao erro, que escolhe o silêncio à mudança, e que se alimenta da nostalgia de um tempo em que a Autonomia era uma promessa e não esta coisa murmurante e cansada que hoje se arrasta pelos corredores do poder.

É preciso romper. Não com heroísmos de cartaz, não com proclamações épicas que soam a coisas ensaiadas para auditórios escolares, mas com lucidez. Com raiva. Com rasgo. Com a impaciência serena de quem já não aguenta a pasmaceira institucional que nos embala há quase cinquenta anos. A Autonomia tem de deixar de ser contemplativa para ser progressiva. Progressiva como quem abre janelas, como quem limpa a casa após décadas de entulho, como quem arranca de madrugada porque percebeu, tarde, mas a tempo, que ficar é morrer devagar.

Autonomia Progressiva, sim. Com poder fiscal. Com poder legislativo. Com um Orçamento que seja nosso e não a esmola adiada de Lisboa. Com a coragem de dizer que não queremos ser geridos, queremos governar. Que não somos apêndice, mas corpo. Que não aceitamos mais esta chantagem mansa de quem nos dá o necessário em troca da obediência. Que a dignidade não se negoceia, nem se distribui em percentagens.

Mas para isso, e aqui começa o verdadeiro problema, é preciso acabar com o regime. Com o regime partido, com o regime família, com o regime capela, onde tudo se conhece, tudo se protege, tudo se troca. A Região não será livre enquanto estiver capturada por um poder que se auto-reproduz como um eco dentro de um poço. Uma autonomia que não se renova por dentro é uma colónia de si própria. E é isso que somos hoje: uma colónia governada por um governador local, com sotaque madeirense e feitio continental.

É preciso abrir. Abrir as instituições. Abrir a democracia. Abrir a boca. Abrir os olhos. Deixar de fingir que está tudo bem quando tudo está imóvel. Deixar de fingir que a Autonomia é uma conquista quando se tornou uma rotina. Deixar de aceitar que nos falem em nome de um povo que há muito deixou de ser ouvido. Porque, se isto continuar assim, se continuarmos sentados, à espera que o Estado resolva, à espera de que os mesmos salvadores se salvem outra vez, então não estamos a viver: estamos a repetir-nos até à náusea.

A Madeira não é apenas um ponto no mapa. Não é apenas um destino turístico, nem um cliché de folclore e poncha. A Madeira é uma ideia. Ou era. E talvez possa voltar a sê-lo. Mas só se tivermos coragem de arrancar. A todo o gás. Com fúria. Com pressa. Como quem foge de um incêndio ou corre atrás de um futuro que já não espera por nós.

Porque a alternativa é continuar assim: no sofá da Autonomia Contemplativa, a ver Lisboa decidir, a ver o tempo passar, a ver o passado repetir-se como um eco surdo, enquanto a ilha adormece outra vez. Mais uma vez.

E não sei quanto a vós, mas eu, sinceramente, estou farto de dormir.

2. Educação: as coisas, as coisas todas, e o pensamento das coisas

O miúdo sentava-se no fundo da sala, o segundo da fila encostado à janela, que era a única coisa que lhe dava sol naquele edifício que cheirava a vomitado velho e giz, a professora com hálito de pastilha de mentol a repetir as mesmas frases de sempre, os olhos dela semicerrados como se estivesse permanentemente a tentar ver através de uma cortina de fumo, a aula de Ciências, ou talvez História, ou Filosofia, mas isso não interessa porque o que se ensina é sempre o mesmo, o mesmo, o mesmo, como se os professores fossem robôs de carne com manuais no lugar do cérebro e as palavras entrassem na cabeça dos alunos com a delicadeza de um tijolo arremessado por uma janela.

Ensinar, diziam. Ensinar o quê? As coisas. Sempre as coisas. A Revolução Francesa em três pontos, as camadas da Terra, o número atómico do cloro, a ordem dos reis de Portugal como se Portugal tivesse alguma vez sido um país com rei que importasse mais do que o cheiro do mar em Setembro.

E o miúdo a olhar para fora, a ver a chuva a bater nos vidros como se os vidros chorassem por ele, ou por nós, ou pelo país inteiro, que ainda acha que educar é alinhar miúdos como sardinhas numa fábrica de conservas, cada um com o seu rótulo, cada um com o seu conteúdo certificado, preparado para ser exportado para a Holanda ou para o Canadá, com boas maneiras e inglês técnico, mas sem uma ideia própria na cabeça.

As coisas. Sempre as coisas.

E a cabeça cheia delas, tão cheia, tão atulhada, que já nem se ouve a si própria. O pensamento, esse, ficou lá atrás, algures entre a infância e o primeiro teste intermédio, desapareceu num corredor da escola, talvez num armário onde se guardam mapas antigos e a vergonha dos professores que ainda se lembram do que era ensinar antes do ensinar coisas e dos cronogramas de competências.

A professora de Português, que já foi boa, dizem, que já foi alguém, entra na sala com a cara cansada de quem passou a noite inteira a corrigir redacções onde ninguém pensa nada, onde todos escrevem como papagaios domesticados com medo de errar, com medo de dizer uma frase que não esteja na rubrica de avaliação, e ela própria, coitada, já não se lembra bem porque é que começou a ensinar, talvez porque amava os livros, ou as palavras, ou a possibilidade de fazer um aluno pensar, mas isso agora é proibido (o pensar) é subversivo, é desestabilizador, dá origem a perguntas difíceis e, acima de tudo, não melhora os resultados nos “rankings” das escolas.

E ensinar a pensar?

Isso é outro campeonato. Isso não dá jeito. Isso não encaixa nos horários. Isso atrasa o programa.

Ensinar a pensar é pôr os miúdos a desconfiar, e a escola não foi feita para isso, a escola foi feita para os formatar, para os domesticar, para os moldar em série, com a mesma fórmula com que se fazem croquetes, com os mesmos ingredientes, os mesmos tempos de fritura, a mesma crosta por fora, e por dentro, carne picada que já não se sabe bem de onde veio.

Pensar, diz ela (a professora, que ainda sonha às vezes, às vezes só), pensar é perigoso. Pensar leva a revoltas, a insónias, a recusar aquilo que nos é dado como certo. E os governos gostam de certezas, e os pais gostam de notas boas, e os senhores da Secretaria gostam de ver planos de aula com todos os objectivos específicos alinhadinhos como soldados em parada.

O pensamento é o inimigo da ordem.

E, no entanto, é só no pensamento que há liberdade.

Não nos manuais, não nos exames, não nas fichas de avaliação contínua.

E o miúdo - o mesmo miúdo - que desenhava nos cantos do caderno rostos que talvez fossem dele, talvez fossem dos outros, ou talvez fossem apenas rostos, começa a perceber que tudo aquilo, o mapa da Europa no quadro, a definição de sistema digestivo, as guerras liberais, tudo aquilo serve apenas para o ensinar a repetir.

E repetir não é saber. Repetir não é compreender. Repetir não é existir.

Existir é pensar. Pensar é existir.

Mas isso não se ensina. Isso tem de se roubar.

Roubar no silêncio, nas margens do manual, nas entrelinhas de um poema que o professor leu depressa demais. Roubar o pensamento como quem rouba pão. Como quem tem fome e precisa de se alimentar de ideias antes que o sistema o esmague, antes que o futuro o transforme num técnico de alguma coisa sem nome, útil, produtivo, eficaz, e profundamente inútil para si próprio.

E talvez um dia, talvez, alguém se lembre que educar não é alinhar factos como quem empilha caixas.

Que educar é acordar a inquietação. Que educar é ensinar a não aceitar. Que educar é dizer: ouve, pensa, sente, e depois decide se isto faz sentido.

Mas para isso é preciso coragem.

E a coragem, como o pensamento, não consta dos programas.