Vergonhoso e inconcebível
Crescem como ervas daninhas os casos que, pela sua natureza e implicações, justificam mais do que um repentino e severo reparo público, antes uma reflexão profunda sobre os valores e a conduta na sociedade que escolhemos para viver e, acima de tudo, medidas eficazes para que os problemas se resolvam sem demora, para que os dramas não se repitam e para que a dignidade humana seja respeitada.
É certo que a alienação cultivada por políticos que escolheram eleições frequentes como modo de vida, em vez de protegerem permanentemente e com firmeza os soberanos interesses do povo que lhes foi confiado, em nada ajuda. Os que passam os dias entretidos com polémicas que minam a credibilidade, com debates inconsequentes e piropos voyeuristas, com negócio pessoais e ajustes de contas, tratando literalmente os portugueses como patos, envergonham-nos. Só que importa agir antes que o medonho domínio do inconcebível, da ilha ao continente, ganhe um lastro incontrolável. Vamos aos factos:
1. Numa semana em que foram conhecidos relatórios que apontam para um aumento preocupante da criminalidade violenta e da delinquência juvenil em Portugal, fenómeno gerador de insegurança e revelador de falhas nas políticas de prevenção e reintegração social, tornou-se público um vídeo de uma violação de uma jovem menor em Loures por três influencers. Terá sido visualizado por milhares de pessoas sem que ninguém denunciasse o crime às autoridades. A aparente normalização das atrocidades e a falta de reacção enérgica perante atentado tão grave espelha uma lamentável falta de civismo e de protecção da vítima.
2. Alguns membros da Associação de Estudantes da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto são suspeitos de terem captado e partilhado fotografias e vídeos de alunas sem qualquer consentimento. A violação da privacidade e a exposição abusiva da intimidade são actos repugnantes e merecem a mais veemente condenação. Não é por acaso que o ‘upskirting’ já é crime em alguns países.
3. A Polícia Judiciária realizou mais de 70 buscas em diversos organismos do Estado, incluindo o Banco de Portugal e a Secretaria-Geral do Ministério da Justiça, devido a suspeitas de corrupção activa e passiva na aquisição de bens na área das tecnologias da informação. O Estado poderá ter sido lesado em mais de 17 milhões de euros. Era uma vez a confiança nas instituições públicas e no bom uso do dinheiro dos contribuintes.
4. A notícia de que crianças portuguesas estão a ser radicalizadas por ideologias de extrema-direita e a ganhar dinheiro com a partilha da pornografia online é profundamente alarmante. É urgente proteger os menores da influência de conteúdos nocivos e de ideologias tóxicas.
5. A taxa de pobreza e exclusão social na Madeira baixou de 30 para 22% entre 2022 e 2024. Segundo a Rede Europeia Anti-Pobreza, que fez o estudo sobre a problemática, o mérito do decréscimo de 8 pontos percentuais é da boa relação entre as políticas sociais e a solidariedade da comunidade madeirense. Mas há um problema que permanece por resolver: a existência de situações de perpetuação da pobreza em várias gerações das mesmas famílias. A fatalidade prova que em vários domínios da existência colectiva nem todos são tratados de igual forma, nem têm o mesmo tipo de acesso a oportunidades redentoras.
6. A persistente crise na habitação, com preços elevados e falta de oferta acessível, continua a afectar muitas famílias. Umas vivem amontoadas nas casas que já haviam deixado e a que voltaram em desespero. Outras dormem onde calha. Muitas aguardam vez ao relento. A dificuldade em encontrar uma habitação digna, agravada pela falta de apoio adequado às famílias mais carenciadas, é uma situação socialmente injusta e insustentável.
7. O Estabelecimento Prisional do Funchal não tem médico. Um dos clínicos de serviço na cadeia saiu e outro encontra-se de baixa. A lei não está, neste momento, a ser cumprida e a culpa não é de quem cumpre pena. Quem devia olhar por aqueles que, privados de liberdade terão ainda que fintar o destino que o desleixo decreta, não pode esperar gratidão.
As questões complexas e preocupantes que marcam a actualidade exigem uma atenção urgente e um debate público sério. Para que possa haver solução e futuro. Já vamos tarde e quando houver governo, cá e lá, o mundo agora abalado pelo trumpismo pode ser outro, ainda mais cruel e insensato.