O culto do nada
Não me deixo levar. Resisto e critico. Desconfio, penso por mim. E como já alguém disse, mesmo “quando tenho a certeza, vou logo confirmar”. Este poderá ser já um “defeito” profissional. É a minha natureza, para além de tudo. E devemos sempre respeitar a natureza verdadeira das pessoas. Não é “defeito”, é “feitio”.
Resisto, com alguma angústia, confesso, ao vazio transversal imenso. Não alinho em conversas de embalar. Independentemente da sua razão, não me quero transformar no Velho do Restelo do grandioso Luís Vaz de Camões, mas atormenta-me verdadeiramente a superficialidade instalada e a tremenda falta de consistência que entretêm a sociedade atual. É uma espécie de “paralisia”. Diria mesmo, um retrocesso intelectual. Não podemos andar apenas entretidos. Precisamos de substância. O culto do óbvio incomoda-me. Aborrece-me. Não compreendo as conferências pedantes de doutorados em trivialidades construídas sobre um arrazoado de encomendas sem impacto. Detesto o culto do nada, o culto da novidade oca, das “startups” fugazes e inconsequentes. Não aceito importâncias de algibeira. Não compreendo a forma como se faz crer que o óbvio tem de ser estudado e como dele se tenta fazer negócio “certificado”. Detesto o lirismo semântico que alimenta carreiras desnecessárias. Detesto a troca de importâncias promiscuas. Não podemos deixar morrer a intelectualidade e o pensamento. Não estou a falar de elites. Estou a falar de conteúdo. E não se confundam as novas elites financeiras do interesse irrelevante com as verdadeiras elites do pensamento. Lido mal com a banalidade. Detesto o lixo comercial. Prefiro o silêncio do meu velho carro à abordagem primária do discurso das rádios nacionais, ao ridículo dos passatempos radiofónicos vazios, aos textos absurdos das novas “canções” dos “tops nacionais”. Há dias passava na rádio uma canção que começava precisamente com a seguinte letra: “Eu tenho andado com dores de garganta e o Brufen já tentei tomar, não adianta”. É muito pouco. Não é nada. Fiquei obviamente chocado. Desliguei o rádio. O que diria António Variações, João Gil, Jorge Palma ou Carlos Tê desta letra?!
Sou contra a infantilização das coisas e das instituições. Gosto da reflexão madura. Devemos sempre rever paradigmas. Não desisto. Este é um tempo de revolução, de reflexão e de evolução. Celebrar a revolução de abril é assumir todos os desafios da liberdade. Celebrar a Páscoa é olhar a morte na perspetiva da ressurreição, da renovação. Como diz Mafalda Veiga, “é preciso morrer e nascer de novo (...) a vida não é existir sem mais nada”. O recato e a paz do luto de hoje, pela morte do Santo Padre, devem abrir caminho para a espiritualidade e para o pensamento. Inspiremo-nos no Papa Francisco, no seu carisma, na sua humildade e na sua força de carácter, nos seus escritos, na sua Carta Encíclica, “humilde contribuição para a reflexão”. Assumamos o “desafio de sonhar e pensar numa Humanidade diferente” e a necessidade de “reconhecer que esta alegre superficialidade de pouco nos serviu”. “A capacidade de pensar a vida humana de forma mais integral, a profundidade espiritual são realidades necessárias para dar qualidade às relações humanas, de tal modo que seja a própria sociedade a reagir face às injustiças, às aberrações, aos abusos dos poderes económicos, tecnológicos, políticos e mediáticos”. É preciso “repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido da nossa existência”. (in Carta Encíclica “Fratelli Tutti”)