Açodados pela Miséria, Ajoujados pelo Sistema
[Açodado: enraivecido;
Ajoujado: curvado sob grande peso]
1. Uma leitura dos documentos do “Estudo de Caracterização da Pobreza na Região Autónoma da Madeira”.
A miséria na Madeira, e pra quê tapá-la, é um sarro peganhento, um trapo entranhado, com bafo a sopa de trigo aguada e remédio fora da validade, que se cola à pele como a comia1 roçada nas costuras de quem já viveu muito e mal. Fala-se pouco dela, como se fosse falta de vergonha, como se a pobreza fosse zaralho ou desmazelo, e não esta cousa antiga e viscosa que se herda como a dívida dum enterro, uma dor nas cruzes, ou uma zimpla2 mal sarada. A Madeira dos postais - das achadas, das ponchas e do vinho seco - é, por dentro, uma ilha lavrada a cicatrizes, uma velhança inchada, com vaquetas3 perras, os joelhos a gemer e um goguento4 crónico que nem xarope resolve.
A pobreza cá não berra, não zanga, não faz zarabulho5. É mansa, como bicho apalpado que sabe que é escusado espernear. Senta-se, encolhida, a olhar o chão, com as mãos no regaço, à espera da carrinha da Casa do Povo ou do cabaz da junta. Aprende-se a estar quieto. Aprende-se que protestar só dá zoada, que pedir é feio e que gritar não paga a renda. E o Governo Regional, esse urcão6 de fato engomado e bico redondo, governa como quem trata dum rebanho de carneiros mansos, distribuindo conquibos7 como quem larga migalhas, comprando sossego com promessas de papel que o vento leva. A Autonomia, essa palavra cheia de pompa, deu em pretexto pra um Estado dentro do Estado, onde tudo se resolve entre o peixe-espada e a sopinha do almoço de domingo.
O pobre madeirense sabe portar-se. Agradece a esmola, sorri na fila do Instituto, conhece o horário da junta e o nome do vendeiro. Sabe que estudar é coisa de fora, que trabalhar é castigo e que fugir para o estrangeiro é só trocar o cheiro do mar por cheiro a fritura e a tubo de escape. E os que ficam, os que se vão mirrando sozinhos nas casas de pedra, os que vivem em cave sem janela, os que esperam vinte anos por uma chave que nunca vem, esses fazem parte da paisagem como os muros de pedra ou as veredas escorridas pela chuva. Estão lá. Sempre estiveram. Sempre estarão.
E os planos contra a pobreza? As tais estratégias? São como craqueiras: redes feitas de palavras bonitas que não apanham nada. Papéis com nomes compridos, cheios de cores e promessas, mas que na venda do dia-a-dia não valem mais que uma cartola em dia de trovoada. No terreno, nada muda. A pobreza continua de chinela rota, a pedir fiado ao vendeiro, a ir ao centro de saúde só quando a dor passa de dor de vazio a coisa séria. O RSI chega para o arroz e o gás, mas não tapa os buracos do tecto nem aquece a casa no inverno. E o futuro? O futuro é uma cousa que ainda não chegou à serra. Fica sempre para a próxima camioneta.
A pobreza cá não é só conta de estatística. É o corpo que se encolhe, a fala que hesita, o olhar que não fixa. É vergonha de abrir a boca. E foi nisso que se especializaram os senhores da governação: em pôr a pobreza a andar de mansinho, sem fazer cramação. Criaram um sistema que não mata a miséria, mas doma-a. Que a trata como cão preso ao pé dum osso: pouco, mas o suficiente pra não fugir. Onde saber ler é menos importante que saber zongar8 com o vereador. Onde esperteza é saber quando ir bater à porta da junta.
E a esquerda? A direita? Todos à volta da mesma mesa, a mastigar frases. A pobreza vira teoria, vira frase bonita pra pôr no jornal. Ninguém calça as sapatas rotas de quem mora no Porto da Cruz, ninguém vê a vergonha de pedir ao padre comida pros filhos. Ninguém sabe o que é escolher entre a luz e os remédios do neto.
Mas não se enganem. Esta pobreza, que parece dormente, pode acordar. Um dia, os filhos dos pobres vão fartar-se. Vão perguntar. Vão renhir. E talvez nesse dia deixem de baixar a cabeça na junta, e comecem a pedir contas. Talvez deixem de sorrir por uma ajuda e comecem a exigir direitos. Talvez nesse dia, esta paz de fachada, feita de luzinhas e cruzeiros, caia como parede velha num dia de chuva.
Até lá, vai-se continuando. Com os turistas, com as fotos, com a poncha. Escondendo os pobrezinhos atrás dos canaviais e das obras do PRR. Varre-se a pobreza pró fundo da venda, como se fosse trapo velho. E os pobres? Continuam pobres. Mas lavadinhos. Calados. Gratos. Como aprenderam desde pequenos.
1casaco de aba comprida 2pancada 3pernas finas 4tosse 5desordem 6gordo 7esmolas 8falar em voz baixa
2. Madeira a Crédito: Quando a Ilusão de Estabilidade Substitui a Política
Esta nova, dita com aquele tom de solenidade de cangalheiro a anunciar enterro ao meio-dia, é o retrato à escala do que é esta terra, ou melhor, esta Região Autónoma, onde o parecer continua a valer mais que o ser, e onde a politiquice se resume, em bom vernáculo, à arte de embaciar o povo com ditos e aparências. A Fitch, essa entidade etérea de polainas tecnocráticas, decidiu manter a nota da Madeira em BBB+, com “outlook estável”, palavreado de consultor que soa a dentinho tomado antes de um quarto de litro: sabe-se que não vale grande coisa, mas não se diz. Em terras onde se anda de cabeça erguida, este tipo de nota seria recebida com uma palmadinha nas costas e pronto. Cá, transformou-se em arremedo de vitória. Manchete. Aleluia. Como se a senhora Fitch tivesse descoberto um exemplo de virtude, bom governo e contas em ordem. Não descobriu.
A Fitch não premia benfeitorias públicas, não distingue mérito, muito menos reconhece quem tem alma ou visão. Limita-se a medir riscos, como quem pesa uma cangalha de dívidas. E diz, com aquele tom de funcionário burocrático de manga e alpaca, se o devedor ainda vai pagando ou se já se atupiu1 de vez. E no caso da Madeira, a resposta é, sim, ainda vai pingando o pagamento. À custa de cativações, expedientes, contenções, uma ou outra sorte nos fundos da União, e muito empalavramento. Isso basta, por agora. Mas não transforma terra nenhuma. Nem remedeia um sistema político que deixou há muito de servir o povo, vivendo para se perpetuar, como jerico velho à espera do feno.
O que esta nota mostra, naquele jargão que mais parece mistura de bailinho com espirro de contabilista, é que a Madeira não se afoga…, mas também não sabe nadar. Vai-se aguentando à tona, à babuge, por entre três pilares: turismo de fartura e pouca margem, fundos europeus que já sabem o caminho da ilha de cor, e uma administração inchada como bichas intestinais, feita de clientelas, cunhas e promessas apalavradas em almoços com sopa de trigo e chicharros fritos. A máquina do governo é um canastro sem fundo, ocupado com o manter das aparências, arranjar tachos e dar cabo de qualquer dinâmica que ouse despontar. As tais “boas contas” servem de almofada a uma ausência quase criminosa de visão. Governa-se à custa de apagar fogueiras, garantir ordenados e pagar juros, como quem cuida dum rancho de vacas cansadas: a andar, mas sempre no mesmo sítio.
Para o povo, esta nova é só mais uma baia. Não muda nada. Os soldos hão-de continuar manhosos, os preços a subir como se a inflação viesse com o vento leste, a saúde feita de listas e esperas, a justiça à chapada, os transportes caros como se fôssemos aimericanos2, o investimento um bicho que só aparece na boca dos políticos em tempo de eleições. A sensação de sufoco não se alivia com uma nota duma agência que escreve relatórios num inglês de bife e serve conclusões mornas como sopa requentada. No limite, esta avaliação abre caminho para mais do mesmo: mais dívida, mais obras para camone ver, mais conferências de imprensa com palavras sem sumo como “resiliência”, “diversificação” e “coerência estratégica”. Tudo vocábulo de quem diz muito sem dizer nada.
Mas o busílis da questão está no que se cala. E o que se cala é que a Madeira está engrolada3. Vive de expedientes. De emalar o que aparece. De resignação feita rotina. Esta nota da Fitch é como tantas outras coisas: um simulacro. Um aplauso a um aluno que não reprova porque ainda sabe copiar sem ser apanhado. Um elogio burocrático a um sistema que se mantém, não por virtude, mas por falta de alternativa. A classe política da Madeira olha-se ao espelho, com olheiras e o fato gasto, e declara com ares de gala: “Afinal, estou óptimo.” Não está. E todos sabem. Mas há um certo conforto, quase espanachado, em fingir que sim. Até ao dia em que a mentira já não chegar.
1enterrou 2americanos 3deixar em cru