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Crónicas

Os madeirenses inda não estão escarmentados

1. Os madeirenses inda não estão escarmentados.

(e eu digo-o com a boca murcha de quem mastiga silêncio há anos, com o bico entalado na sopa morna da resignação)

Em bom madeirense, vos escrevo para dizer que os madeirenses inda não estão escarmentados, não senhor, e vê-se isso na maneira como continuam a abarbatar promessas como quem colhe vaginha debaixo de chuva, sabendo que estão verdes, sabendo que vão dar agastura ao estômago e mesmo assim comendo, comendo, porque têm fome, não de pão, mas de esperança, uma esperança azamboada, magra, com ares de chimbança, feita de ditos de comadres e promessas de alpendres.

Vão às urnas como quem vai à festa do Espírito Santo: não por fé, mas por costume. E lá entregam o voto, como se fosse uma broa velha, à espera que venha um brozilhão qualquer, um convite, um aperto de mão do chefe de freguesia, um posto de trabalho para o bizalho que acabou o curso e anda com o bandulho a arder de desespero.

Os madeirenses inda não estão escarmentados porque habituaram-se ao alambriado das palavras redondas, ao açodado da política do favor, à maré de discursos que são como a pota do mar: banzeiro, espuma e nada de peixe.

Diz-se, por cá, que fulano é esperto, é algorreiro, porque sabe a quem ligar, a que horas aparecer, com que tom falar. E isso basta. Isso é currículo. Mais vale saber pedir do que saber fazer. E os que não se metem nisso são logo tidos por alonsos, por gamberneiros do juízo, por gente que não presta porque não se vende.

Os madeirenses inda não estão escarmentados porque aprenderam a viver entre o bambote e o bordado, entre a festa e o funeral, entre a chulice e a choradeira, com a cabeça enterrada num bardaço de promessas que nunca se cumprem, mas que consolam, como o cheiro do brindeiro no Natal.

E quando alguém levanta a voz, dizem que é bestum, que quer dar bigode, que é cubano ou, pior ainda, funchalense da cidade que pensa que é capital de coisa alguma. E cala-se o tal, acagaçado, com medo de que o chamem de burzelo, de espertalhão, de traidor à terra.

Mas a verdade, ó minha gente, é que esta ilha está encafuada. Encarcerada em si mesma. O que devia ser autonomia virou capoeiro. O que devia ser liberdade virou ladainha. E os que tentam mudar o rumo acabam por se embruchar em desilusão, com a alma abestemada de tanto tentar.

Os madeirenses inda não estão escarmentados porque confundem o açodado com o justo, o apego com o amor, a tradição com a submissão. Mas há-de vir o dia, e esse dia não será anunciado com foguetes nem charambas. Será um dia cinzento, de tempo abatumado, em que alguém, talvez um desgraçado no fundo do mato, diga: basta.

E nesse dia, sim, talvez a Madeira desentupa. Talvez se arrume o barrisco da política, se varra o bicho da dependência, se enterre o voto por favor no mesmo buraco onde se enterram os animais mortos, bem fundo, com cal e vergonha.

Até lá, meus amigos, os madeirenses inda não estão escarmentados. E, se calhar, nem querem estar. Porque o escarmento dói. Dói mais que a batatada que se leva na praça.

E há por aqui muita gente que prefere continuar amassacada, mas calada. Porque sempre se disse que quem se cala, mama.

E isso, por estes lados, é profissão.

2. Notas para um Adeus em Voz Alta.

Na quinta-feira passada deixei de ser deputado.

Não sei muito bem o que quer isso dizer, deixar de ser deputado, se alguma vez o fui de facto, pois fui antes um homem sentado numa cadeira emprestada, numa sala de luz artificial onde as palavras se acumulavam nos cantos como pó, onde os discursos se diziam como quem reza por obrigação, com a fé gasta dos que já não esperam milagres e repetem o Pai Nosso só porque sim, porque sempre foi assim, porque é preciso dizer qualquer coisa para que o tempo passe e o dia acabe, e a noite nos devolva a casa e ao cansaço.

Foram duas legislaturas. Curtas, dizem. Curtas e intensas, repito, como se a intensidade servisse de medida redentora à brevidade, como se bastasse ter sofrido muito e depressa para que valesse a pena. Mas valem sempre, estas coisas. Aprendi, sim, não sei se o bastante, não sei se da forma certa, não sei sequer se se aprende alguma coisa que nos valha quando nos sentamos sozinhos e pensamos no que ficou por fazer, por dizer, por emendar. Mas aprendi. E, sobretudo, tentei.

Tentei servir. Que verbo difícil. Servir. Com a dignidade possível. Com o esforço inteiro de quem acredita que ainda é possível alguma coisa. Aos madeirenses que confiaram no partido pelo qual fui eleito e em mim, obrigado. Um obrigado sem gritos nem bandeiras, um obrigado sóbrio e de cabeça baixa, como quem se despede do campo depois da poda. Fi-lo o melhor que sabia. Que soube. Que pude. Não sei se basta, mas foi tudo.

Aos que acreditaram em mim de peito aberto, sem armadura, sem interesses escondidos, apenas com a generosidade crua dos que esperam, dos que acompanham, dos que caminham a par, o meu silêncio grato. Enriqueceram-me. Não com cargos nem elogios, mas com a decência rara de estarem, de serem, de permanecerem quando o barulho passava.

Obrigado, também, aos que chateei. E como vos chateei, meu Deus. Pela sede de saber, pela ânsia de compreender, pelo medo de ser apenas mais um boneco de fato e gravata que nunca usei e papelinhos com notas e apontamentos. Perguntei, insisti, discordei, arrastei conversas até à exaustão. E vós, pacientes, irónicos, exasperados, generosos, alimentaram essa inquietação que nunca me abandonou.

À minha família que me viu chegar tarde, que me escutou ausente, que me suportou nervoso, calado, explodido, esgotado. Que foi casa. Que foi refúgio. Que foi certeza quando tudo o resto se fazia de dúvida. Obrigado. Por estarem. Por não perguntarem demais. Por amarem sem condição.

Aos funcionários da Assembleia, esses invisíveis gigantes de paciência e eficiência, o meu mais fundo reconhecimento. São a espinha dorsal de uma casa tantas vezes corcunda. São profissionalismo. São humanidade. São gentileza. E levar-vos-ei comigo, dentro, como quem leva retratos antigos numa carteira gasta.

E aos outros deputados (meus adversários, meus cúmplices, meus espelhos distorcidos) obrigado também. Obrigado pelas palavras que me obrigaram a pensar melhor, pelas lutas que me obrigaram a estudar mais, pelas ironias que me obrigaram a afiar a língua e o espírito. Fizemos política, sim. E, às vezes, até fizemos democracia.

Agora sento-me. Apago as luzes. Fecho a porta com cuidado, como quem sai de uma sala onde dormem os filhos. E volto a ser apenas isto: um homem com o nome que traz do pai, o cansaço de quem tentou, e a esperança de que nada foi em vão.

Até já. Ou talvez até nunca. Não sei.

3. Morreste

As pessoas têm o péssimo hábito de nos morrerem, e eu fico sempre com aquela sensação de que deviam pedir licença antes, preencher um requerimento, submeter a papelada, aguardar deferimento, um carimbo, qualquer coisa que nos desse tempo para arrumar a casa, dobrar as roupas, aparar os cantos da dor, mas não, morrem assim, de repente, e a gente fica com as mãos vazias, a mesa posta para ninguém, o cheiro delas ainda no corredor, o vulto a passar na cadeira ao canto como um eco de alguma coisa que já não existe.

O telefone toca e quase atendo a pensar que é ele, ela, a voz do outro lado a rir-se de mim, de nós, desta coisa absurda de continuarmos vivos quando já não faz sentido nenhum. O problema não é a morte, nunca foi a morte, o problema é a continuidade dos dias, a maneira como a vida insiste, como o sol continua a nascer, os pássaros a cantar, as contas a chegar pelo correio, os vizinhos a falarem da chuva como se nada tivesse acontecido. O problema é o corpo ainda aqui, a obrigação de continuar, de levantar da cama, de pôr os pés no chão e fingir que não estamos partidos por dentro.

O problema é que os mortos ficam. Nunca se vão embora completamente, instalam-se nas gavetas, nas palavras que não dissemos, nas cartas que nunca escrevemos, naquela vontade de olhar para trás à espera de um aceno, uma sombra, um qualquer sinal de que não estamos completamente sós. Mas estamos. Sempre estivemos. E no fundo, sabíamos. Só que fingimos que não.

As pessoas têm o péssimo hábito de nos morrerem, e nós temos o péssimo hábito de continuar a amá-las.