Terraplanistas por convicção
Não restariam temas regionais para abordar neste artigo, mas o que aconteceu na Assembleia da República, na passada semana, tomou proporções animalescas – ou, pior, a um nível tal que nem os próprios animais eram capazes de atingir.
A decência na política desceu a níveis neandertais que não deviam ter conhecido lugar no chão comum de um conjunto de valores e princípios que foram a base para a construção dos alicerces democráticos que nortearam os fundadores do regime.
O bando de ratos morais que marcham pela degeneração mórbida de dois princípios tão básicos, o respeito e a educação, são os oficiosos representantes de uma irremediável mediocridade que se refocila de gozo ao vomitar os mais decrépitos e asquerosos insultos com um hálito fétido do saudosismo cintilante a um regime já derrotado.
A ordinarice dos insultos dirigidos à deputada Ana Sofia Antunes é a exibição do pior de um conjunto de andrajosos acólitos seguidores do filósofo rei-platónico que prosseguem na admitida luta pela erosão da credibilidade das instituições democráticas, a começar no debate público que é desalinhado no que interessa – já que o acefalismo próprio destes broncos bloqueia-os de qualquer discussão mínima substancial –, e que procuram escamotear na fragilidade da Democracia, as suas reais intenções, mas, acima de tudo, a exibição do pior de si próprio.
Terraplanistas de convicção e militantes fanáticos de um Cícero que apela a tudo e a todos, menos à sua coerência, que representam o que a política, e arrisco-me a dizer até a sociedade, tem de pior. E a isto acorreram os que há muito deles se têm alimentado – os socialistas.
Parece que a memória débil vinga, e por isso mesmo é oportuno relembrarmo-nos da forma como os socialistas lideram com um antro de pacóvios, que vivem nas trincheiras da alarvidade, até porque deles se serviram, e ainda servem. Relembrarmo-nos da forma como Ana Catarina Mendes falava da imigração em Portugal, os termos que usava e a (alegada) superioridade intelectual, e arrogância, com que se apresentava sobre qualquer pessoa que dela discordasse. Relembrarmo-nos da forma como Eurico Brilhante Dias e Santos Silva procuravam capitalizar a verborreia típica de uma taberna para ganhos políticos, partidários e, em última análise, próprios. Relembrarmo-nos da forma como João Torres – ex-secretário geral do PS – que lançou de uma forma muito ténue, a suspeição de que, a propósito da maioria absoluta de Costa em 2022, “havia setores na oposição que não aceitaram o resultado eleitoral”. É certo que o próprio reconheceu que não queria comparar Portugal com as situações dantescas nos EUA e no Brasil, mas, exatamente por isso, porque é que lançou uma aberração dessas para o debate público? Ou relembrarmo-nos de António Costa que utilizou os radicais – não sei se de direita ou esquerda porque elogiam Trump, o amante de Putin – para chantagear o povo português com hipotéticos acordos entre sociais-democratas e radicais; bem como a forma descarada com que procurava equiparar o Partido Social Democrata ao Chega, tal como Pedro Nuno Santos equiparou o “radicalismo” da Iniciativa Liberal ao radicalismo do Chega. Ou relembrarmo-nos do discurso profunda e marcadamente divisionista que os socialistas adotaram desde 2019 para que sobre os sociais-democratas e liberais pairasse a nuvem da suspeição de eventuais acordos que, até hoje, na República, nunca aconteceram.
Uma submissão esbugalhada à retórica socialista de hoje é esquecer o passado recente, sem que se atribuam responsabilidades a quem usufruiu, e promoveu, o crescimento de algozes herdeiros seculares do atraso civilizacional. Não há maior hipocrisia do que atear um fogo e logo a seguir tentá-lo apagar com gasolina.
Dito isto, o que aconteceu na casa da Democracia é a encenação política do que dizia Torga: “Em Portugal, as pessoas são imbecis ou por vocação, ou por coação, ou por devoção”. A imbecilidade foi e é tanta que espero ter servido de lição para aqueles que num arpejo desejavam, defendiam e queriam uma aliança, um acordo, ou um entendimento, com estes mesmos protagonistas da imbecilidade.
Disse o Cardeal Tolentino Mendonça, na missa por si conduzida em substituição do Santo Padre, o seguinte: “Vós, homens e mulheres de cultura, sois chamados a construir pontes, a criar espaços de encontro e diálogo, a iluminar e a aquecer corações.” Para os renegados do sistema, acérrimos defensores da Igreja Católica, mas não praticantes da sua doutrina, pontes não existem, diálogo também não – só berraria –, encontros idem aspas – só nas malas rolantes do aeroporto, e corações só nos romances del filósofo rei.