Será mesmo amor?
Nas relações conjugais, o abuso (disfarçado de amor) é assustador, e é ainda mais delicado quando acontece em relações entre pais e filhos. Afinal, que mapa de amor herdamos e perpetuamos?
Estamos às portas daquele que o calendário determina ser o Dia dos Namorados. Os vitrinistas desdobram a imaginação em corações, rosas encarnadas e afins na esperança de atrair compradores. É bonito celebrar o amor. Seja ou não, romântico. Todo o ano. Com gestos, com palavras. O amor, não o que tantas vezes ouvimos dizer por aí, que é amor. É que por muito que alguns sonhem com a ideia de que a “cara metade” é ou vai ser diferente do que é, isso não é amor. Isso é, quanto muito uma idealização, uma expectativa e, no meu mapa, uma falta de respeito tremenda, primeiro, por si próprio e - em simultâneo ou imediatamente - pelo outro.
Imbuídos na ilusão causada pela paixão, deixamo-nos ir na narrativa interna de que o outro é a pessoa idealizada (em vez de ser quem é) acabamos a amar a idealização. Só isso. Como a imaginação é fértil disparam as cobranças. Sem sentido para o outro, claro. A seguir vem a zanga, as acusações de que o outro é culpado pelo nosso sofrimento. Só que não.
Podemos dizer que uma relação tem (pelo menos) duas fases, aquela em que vemos a imagem que criámos da outra pessoa; e, depois, a fase em que de facto, a vemos. Essa é uma consciência que emerge quando assumimos responsabilidade pessoal. Apaga-se a paixão, de quando em vez acompanhada de uma baldada de água fria (que é boa para acordar!). É o desmoronar das ilusões. E é também, a oportunidade de começar a relação a sério. Isso, ou então, terminar aquela relação. Até porque, esta para ser séria tem que ser saudável, ou seja, nutrida pela honestidade, uma boa comunicação, consciente e assertiva. Na qual existe responsabilidade pessoal, integridade e igual valor. Sem máscaras. Sem defesas. Sem subterfúgios. Onde cada um é visto e reconhecido. E é essencial que haja espaço para o consentimento. Sempre. Todas as vezes que houver intenção de avançar para uma relação sexual. “Sim” é “sim” e “não” é “não”. Sem um “sim” muito claro não há consentimento e o sexo não pode acontecer. Mesmo dentro do casamento (quando não existe é do mais devastador que se possa imaginar, sobretudo quando há manipulação para que aconteça e quando existe o mito dos filhos a “segurar” o casamento!)
O problema de não ganharmos consciência de tudo o que já mencionei é o sério perigo de cairmos no abismo do abuso! E tem sinais muito claros, que se manifestam desde o primeiro momento. Partilho alguns:
• Sedução recorrendo a elogios, presentes, oferecendo uma falsa sensação de vínculo, de sentido e pertença (tão fácil cair aqui se a autoestima estiver frágil);
• Exercício do poder e do controlo através da manipulação - pela mentira, com recurso às generalizações, distorções e omissões de factos, por exemplo, recorrendo ao secretismo: “não digas a ninguém”, “sou uma pessoa tímida não consigo partilhar com mais ninguém, só contigo”, ou contradição de acusações: “isso é mentira: não foi nada disso que aconteceu, percebes sempre tudo mal!”, “eles estão baralhados, não foi nesse dia, foi há muito mais tempo.” Também a manipulação pela culpa: “devias agradecer o que faço por ti”, “nunca te amaram como eu”, “sabes há quanto tempo não fazemos amor? Já há 33 dias! Depois queixa-te.” Ainda, a manipulação pela vergonha: “não confias em mim?”, E a manipulação pelo medo: ameaças, perseguição, vingança, terror: “nem sabes o que te pode acontecer”, “nem sonhes!”, “ai de ti!”, “experimenta, e vais ver só o que te acontece!”, “não me dás o código do teu telemóvel porquê? O que é que me estás a esconder?”, “Não queres fazer amor porque tens outra pessoa e eu vou descobrir quem é!”
• Atritos, conflitos, não assumir responsabilidade apontando a ‘culpa’ para os demais, leva ao apodrecimento da relação, traz a inabilidade de manter a escuta, o diálogo, a negociação. A agressividade-passiva, por exemplo, na demora a responder a mensagens (e a seguir usar a desculpa que não viram, que o telemóvel estava sem som, sem bateria…), o uso do silêncio, a frieza (que pode chegar a ser glaciar), o evitar o contacto ou até uma rejeição mais óbvia do outro, que pode ir da discriminação à exclusão, são tudo formas de abuso.
E é bom lembrar que o abuso é (quase sempre) invisível para quem não o vê. Ou seja, o abusador não tem consciência que o é e pode ter uma ténue perceção dos estragos que provoca. Pode estar convencido que está no seu direito. Pode achar que está a fazer o melhor para todos. Quem já foi vítima de abuso sabe bem que é comum escutar-se do abusador coisas como: “faço tudo por ti e é assim que retribuis?!”, “tanta ingratidão!” E se a pessoa abusada também não reconhece que o é, ou se é ‘passiva’, se não manifesta verbalmente ou de outra forma, sinais de sofrimento ou incómodo (e sabemos que culturalmente, tendemos a esconder estes sinais, prolongando-os no tempo e com eles o sofrimento), o abusador vai continuar convencido de que está tudo bem, não há nenhuma reflexão a fazer, nenhum pensamento, crenças e comportamentos a alterar.
Acredito mesmo que as relações são os melhores cursos de desenvolvimento humano que podemos ter. Se evoluímos com elas, quer dizer que ganhamos maturidade, significa que estamos a fazer bem o nosso trabalho de casa. Quer dizer que identificamos e honramos a nossa vulnerabilidade, as nossas necessidades, definimos valores e limites essenciais. E é assim que garantimos que há coisas que nunca mais vão acontecer. E, de repente, percebemos que não estamos sozinhos, que houve mais pessoas a passar por situações idênticas. E facilmente entendemos, de uma vez por todas, que quando colocamos em ordem a relação connosco próprios, que é como quem diz, quando nutrimos a nossa autoestima e nos aceitamos por quem somos, e não por quem nos disseram que deveríamos ser, coletivamente ganhamos a possibilidade de fazer algo: podemos amar a sério, por inteiro. Podemos ser exemplo de amor incondicional para os nossos filhos. Porque o que acontece na infância, vai connosco para a vida.