O golpe que não foi golpe e que salvou a democracia
Cinco décadas após o 25 de Novembro de 1975, o debate sobre o seu significado permanece vivo e necessário. Não apenas porque encerrou o período mais turbulento do processo revolucionário, mas porque clarificou o papel dos militares numa democracia ainda em construção e ajudou a definir o posicionamento externo de Portugal. As escolhas feitas naquele momento crítico continuam a moldar o modo como o país se posiciona perante aliados, parceiros e rivais num mundo cada vez mais instável.
A Delegação da Madeira da Associação dos Auditores dos Cursos de Defesa Nacional (AACDN) em parceria com a Assembleia Legislativa da Madeira (ALM) assinalam este aniversário com a presença do Tenente-General Nuno Lemos Pires, Diretor-Geral de Política de Defesa Nacional, numa conferência dedicada ao tema, “50 anos do 25 de Novembro: a importância da Instituição Militar para a Segurança do País e Aliados”. Esta reflexão sobre o passado deve servir para reforçar a qualidade da democracia e a resiliência estratégica de Portugal.
O 25 de Novembro foi, antes de mais, um momento em que o papel das Forças Armadas se redefiniu. Desde 1974, os militares tinham assumido simultaneamente funções de libertação, transformação e arbitragem política. Porém, a acumulação de tensões internas e externas, a pressão ideológica e a fragmentação dentro das estruturas militares criaram um impasse que ameaçava o próprio processo democrático. O desfecho de Novembro não resultou da vitória de um setor sobre outro, mas da perceção crescente entre oficiais de distintas sensibilidades de que era necessário estabilizar o país, assegurar o pluralismo e devolver aos civis a condução da vida política.
Este momento marcou o fim do papel tutelar que muitos haviam atribuído às Forças Armadas e inaugurou um caminho de profissionalização, neutralidade e subordinação clara ao poder político democrático. Sem esta redefinição, não teria sido possível consolidar o modelo de democracia representativa que hoje vemos como adquirido.
Mas o 25 de Novembro teve também implicações profundas no posicionamento internacional de Portugal. Em 1975, o país encontrava-se num tabuleiro geopolítico marcado pela Guerra Fria, disputado por potências que viam o rumo político português como um teste estratégico. A estabilização institucional e a rejeição de soluções políticas de caráter revolucionário abriram caminho à normalização das relações com os aliados tradicionais, nomeadamente no âmbito da NATO, e reforçaram a confiança externa no futuro de Portugal como democracia liberal europeia.
Este reposicionamento foi essencial para a entrada na Comunidade Económica Europeia em 1986, uma das decisões mais transformadoras da história recente nacional. Sem o ambiente de previsibilidade democrática que o pós-Novembro permitiu criar, dificilmente Portugal teria atraído o investimento, o financiamento e o apoio diplomático necessários para este salto estrutural.
Menos discutida, mas igualmente decisiva, foi a influência do 25 de Novembro na conquista das Autonomias da Madeira e dos Açores. Sem a estabilização institucional que resultou desse momento, dificilmente teria sido possível aprovar um modelo de autonomia política sólido e duradouro para a Madeira. A clarificação do quadro democrático, afastando tentações hegemónicas e recentrando o poder na legalidade constitucional, criou as condições para que o debate sobre a Autonomia decorresse num ambiente político previsível, culminando no Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira e na consolidação dos órgãos de governo próprio. O nosso caminho para a Autonomia é, por isso, inseparável da normalização democrática que o 25 de Novembro tornou viável.
Já as Forças Armadas enfrentam, 50 anos depois, desafios muito distintos: missões internacionais mais complexas, ciclos de modernização exigentes e uma relação cada vez mais estreita entre defesa, tecnologia e soberania económica. A participação em operações de paz, missões de dissuasão e estruturas cooperativas europeias e transatlânticas demonstra que o papel dos militares na democracia não se esgota na defesa do território, mas integra a imagem e credibilidade externa de Portugal.
Ao mesmo tempo, o ambiente internacional é hoje mais fluido e fragmentado. A competição estratégica entre grandes potências, a emergência de novas ameaças híbridas e a volatilidade do sistema multilateral exigem que Portugal reforce a sua capacidade de leitura e atuação. Neste contexto, a estabilidade democrática e a clareza institucional continuam a ser ativos estratégicos. Tal como em 1975, aliados e parceiros observam a coerência interna do país para avaliar o seu valor como membro confiável e previsível.
O 25 de Novembro recorda-nos que os militares só podem desempenhar plenamente a sua missão quando operam num quadro democrático sólido, com orientações políticas claras e legitimadas. E lembra igualmente que a política externa portuguesa está intimamente ligada à consistência do seu sistema político interno. Democracia, segurança e posicionamento internacional não são dimensões separadas, mas partes de uma mesma equação estratégica.
A conferência promovida pela AACDN em parceria com a ALM insere-se nesse esforço de aprofundamento crítico. As comemorações não devem limitar-se à memória; devem servir para reforçar a cultura estratégica do país, estimular o diálogo entre civis e militares e promover uma visão partilhada sobre os desafios que se colocam à segurança nacional no presente e no futuro.
Cinco décadas depois, o 25 de Novembro continua a ser mais do que um episódio histórico. É uma referência para pensar como Portugal pode manter-se democrático, seguro e relevante num mundo em rápida transformação. E é também um convite a reconhecer que a estabilidade conquistada naquele momento não é um dado permanente, mas um bem a cuidar — com instituições robustas, forças armadas modernas e um compromisso renovado com o pluralismo e com o projeto europeu e atlântico que ajudaram a ancorar o país no espaço das democracias avançadas.