DNOTICIAS.PT
Crónicas

Que seja com sentido

Porque a vida não se mede pelas metas cumpridas, mas pelo significado e pelo sentido vivido

“Vê se levas as doze passas para comeres à meia-noite”, disse-me há dias uma amiga, convencida de que o ano novo começa ali, naquele segundo exato. Percebo o ritual… só não acredito nele.

O ano novo nunca é pirotecnia. É travessia interior. Para mim, começa num instante discreto, quando o barulho abranda, quando o copo pousa na mesa, quando o corpo, cansado de promessas recicladas e de aplausos que não sustentam, se senta finalmente ao lado da verdade.

O ano novo começa quando deixamos de fingir que a mudança precisa de brilho e fogo-de-artifício.

Há qualquer coisa de profundamente infantil - e por isso bonito - na ideia de que um número no calendário tem poderes mágicos. Como se a vida estivesse à espera de autorização formal para se reorganizar. Como se o caos fosse educado o suficiente para respeitar datas comemorativas.

O ano novo, na verdade, não pede resoluções. Pede escuta e empatia. Não exige heroísmo, pede atenção. Pede que olhemos para o que foi vivido sem o chicote da culpa e sem a anestesia da nostalgia. Que aceitemos o ano que passou como se aceita um mestre exigente, nem sempre gentil, mas quase sempre preciso para evoluir para outro estado.

O que doeu ensinou. O que ficou revelou. O que partiu libertou espaço.

Há anos que não nos deram o que pedimos, mas deram exatamente o que precisávamos para deixar de insistir no erro com ar de esperança. Generalizar a experiência dos outros pode ser uma forma elegante de desistir da própria. Dá conforto, mas não dá verdade. O problema não é repetir padrões, é não ter consciência disso e chamá-los de destino, evitando assumir responsabilidade pessoal pelas escolhas.

Entrar num ano novo é, antes de tudo, um exercício de responsabilidade emocional, não no sentido pesado da palavra, mas no seu núcleo mais simples: perceber que aquilo que sentimos não é culpa do tempo, nem do outro, nem das circunstâncias. São estados. É informação. Ignorá-la é repetir. Escutá-la é escolher fazer diferente.

Talvez o verdadeiro ritual de passagem não seja vestir branco, ou outra cor ritualista, nem fazer listas de objetivos, nem alinhar metas. Talvez seja mais radical ainda, sentar-se em silêncio e ficar, sem distrações, com o que insiste em pedir lugar. Porque crescer não é acrescentar. É depurar. Há uma espiritualidade muito concreta neste gesto. Uma espiritualidade sem incenso, mas com coragem. A coragem de reconhecer que algumas versões nossas foram úteis, mas já não são verdadeiras. E que insistir nelas é uma forma elegante de traição interior.

O ano novo não pede entusiasmo. Pede presença e amor. Pede que sejamos suficientemente maduros para perceber que não controlamos o mundo (de fora), mas somos totalmente responsáveis (pelo nosso mundo interior) pela forma como o habitamos e pela forma como gerimos os nossos estados e a nossa consciência. E suficientemente humildes para aceitar que a vida não se organiza para nos agradar, mas para nos afinar.

Assim, o ano novo não é um começo limpo. É um começo consciente.

Que seja com sentido.

E consentido.