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Eles sabem que é Natal?

Foi no dia de hoje, exatamente 41 anos atrás, que no Sarm West Studios em Notting Hill, Londres, se fez história. Uma série de reportagens da BBC atraiu a atenção da população britânica para a fome na Etiópia, descrita na altura como “bíblica” e “a coisa mais parecida com o Inferno na Terra”, e resultou numa onda de doações às agências humanitárias. Bob Geldof, na altura mais conhecido como o cantor da banda rock Boomtown Rats, decidiu, juntamente com a sua amiga, a apresentadora britânica Paula Yates, e o cantor Midge Ure, da banda Ultravox, criar uma canção que pudesse ainda aumentar as doações para o efeito. Querendo minimizar os custos, falaram com o conhecido produtor musical Trevor Horn, que lhes cedeu o seu estúdio gratuitamente por 24 horas.

Entre as dezenas dos artistas de topo presentes na gravação estavam Phil Collins, Bob Geldof, Simon Le Bon, Bono, David Bowie, Boy George, George Michael, Sting e Paul McCartney. Posteriormente, foram reunidas mais duas formações sob o mesmo nome. A de 1989, devido a outra onda de fome na Etiópia, e contando com nomes tais como Kylie Minogue e Cliff Richard. Já a de 2004 (Band Aid 20) foi feita para marcar os 20 anos do projeto e contou com a colaboração de Bono Vox, Sugababes, Joss Stone, Paul McCartney e Robbie Williams, entre outros. Todas as três iniciativas chegaram rapidamente ao topo das paradas musicais britânicas.

A primeira iniciativa arrecadou 8 milhões de libras dentro de um ano, excedendo em muito as esperanças de Geldof. O sucesso inspirou iniciativas semelhantes, tais como “We Are the World”, em 1985, nos Estados Unidos, para África, e Live Aid concerto em 1985.

A questão retórica do título da canção, que alerta para a situação crítica de milhões de pessoas nas regiões pouco hospedáveis e ainda por cima devastadas pelos conflitos armados e êxodos associados, continuou a ecoar ao longo das décadas intervenientes e hoje em dia, apresenta-se igualmente atual e premente. Nos últimos anos, o progresso da luta contra a fome abrandou significativamente, e as estatísticas sugerem que neste momento quase 300 milhões de pessoas, sobretudo na África e Ásia ocidental, estão a ser ameaçadas pela fome aguda, mais do que o dobro do número de 5 anos atrás. Países e territórios tais como Sudão, Sudão do Sul (o mais novo país do mundo, criado em 2011), territórios ocupados da Palestina, Haiti e Mali, foram identificados como focos principais. A situação continua a agravar-se também no Iémen, na Síria e também na Índia. A melhoria relativa da situação na América Latina no sul da Ásia pouco faz para influenciar a média estatística, prevendo-se que mais de 500 milhões de pessoas estarão num estado de subnutrição crónica dentro de 5 anos.

Quantas “questões retóricas” e ações humanitárias do tipo aqui referenciadas seriam necessárias para melhorar significativamente a situação? Falar em “reverter” parece quase fantasmagórico, sobretudo contemplando os indicadores que sugerem que, se o “progresso” se mantiver no nível observado desde 2016, fome denominada “baixa” a nível global só poderá ser atingida algures em 2137, a mais de um século de distância.

E esse alvo parece ainda mais inalcançável sabendo que os investimentos na assistência humanitária estão a baixar significativamente, enquanto está a subir com a mesma intensidade o investimento nas despesas militares, numa inversão óbvia das prioridades. Durante o ano passado, a violência armada esteve na origem de 20 crises alimentares e afetou quase 140 milhões de pessoas. A fome tornou-se numa das armas habitualmente utilizadas para provocar migrações e impor submissões.

Claro que essas “gotas no oceano” que são as ações humanitárias realizadas através das iniciativas culturais sempre chegam a ajudar (se chegam ao seu destino) a alguns, e qualquer vida salva é uma vida humana com o mesmo valor que qualquer outra, mas o “remar contra a maré” parece que ficará isso mesmo, até não se alterar aquela parte da natureza humana que, em vez de desejar o melhor para qualquer seu irmão humano, cobiça o poder e o domínio em detrimento de todos os outros.

Não obstante essa perspetiva globalmente pessimista, qualquer caminho começa com um primeiro passo, e depois mais um e mais um a seguir…

Vem aí o Natal – não deixemos que a noção do Natal e da benevolência associada fique uma ilusão, nem que seja para um outro nosso irmão na Humanidade!