30 anos depois: o mesmo lugar, um novo olhar
Há trajetórias profissionais que se desenham em linha reta. Outras, seguem caminhos menos lineares, cheios de partidas e regressos, de pausas e recomeços. A minha, na função pública, é uma dessas.
No próximo mês de novembro completo trinta anos de carreira pública, no mesmo lugar onde tudo começou. Por mais que possa parecer que se fecha um círculo, tal não corresponde à realidade, pois nunca voltamos iguais ao ponto de partida.
Lembro-me do primeiro dia, com aquela mistura de ingenuidade e esperança que quem começa em algo novo tem. Ao longo de três décadas, percorri diferentes áreas: Saúde, Social e Habitação. Passei por vários cargos, funções e responsabilidades. Vivi a transformação das instituições, a modernização tecnológica e as novas exigências da sociedade.
Retenho a certeza, transversal a todas as áreas por onde passei, de que trabalhar no setor público é, muitas vezes, lidar com a incompreensão, com a crítica fácil, com a sensação de que o esforço de tantos passa despercebido e só se destaca a incompetência ou desleixo de alguns, poucos, mas que contribuem para que se tome essa pequena franja de funcionários públicos como o todo. Assim, vezes demais, ficam no esquecimento as mãos invisíveis que garantem que a sociedade funcione, que os direitos se cumpram e que a confiança, mesmo que abalada, se renove.
E, nos tempos atuais, que renovação se deseja para a função pública?
Durante muito tempo, a função pública foi vista como sinónimo de estabilidade, de segurança e de rotina. Mas hoje, para o funcionário público, a exigência é maior, a sociedade mais impaciente, a tecnologia mais rápida, e o reconhecimento mais escasso.
Assim, o futuro da função pública depende, mais do que nunca, da capacidade de se reinventar. Inevitavelmente, serão tempos cada vez mais tecnológicos, com sistemas inteligentes, inteligência artificial e plataformas integradas. Contudo, por mais eficiente que seja o processo digital, só faz sentido se for para servir as pessoas. Podemos ter portais eletrónicos perfeitos, mas se as pessoas não se sentirem acompanhadas, o serviço falhou. Porque modernizar não é só digitalizar, é, acima de tudo, nunca perder de vista que o que o cidadão valoriza é ser visto, ouvido e, sobretudo, respeitado. Claro que se quer que os serviços públicos sejam eficientes, mas sem nunca perderem o atendimento empático, com respeito pela dignidade das pessoas. Requisito obrigatório em todos os serviços, mas sobretudo nos que mais lidam com a fragilidade e vulnerabilidade humanas, como sejam a Saúde, o Social e a Habitação.
Mais do que modernizar, que também é relevante, a função pública precisa de ser valorizada. E por valorizar não se entenda só rever carreiras e salários (embora isso seja importante), mas também reconhecer o valor social dos funcionários públicos. E fazer do serviço público um espaço de crescimento, de inovação e de orgulho profissional, em que sejam escolhidos os melhores e não os que tenham a cor partidária do momento ou a bajulação e servilismo como caraterísticas principais. Neste campo, vem-me à memória a frase de Oscar Wilde, nascido no dia de hoje, mas de 1854: “A cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo. Para ser popular é indispensável ser medíocre.” ...
Outro aspeto a ter em consideração é a necessidade de juntar a inovação de quem chega com a experiência de quem ficou. Com uma parte significativa dos funcionários públicos a se aproximarem da reforma, corremos o risco de perder não apenas pessoas, mas décadas de experiência, de memória institucional e de conhecimento sobre a própria máquina administrativa. O conhecimento acumulado é um património que não se pode desperdiçar. Neste contexto, é urgente garantir uma passagem de testemunho serena e inteligente, pois o futuro constrói-se com diálogo entre gerações e não em rutura.
Reconhecer o valor da experiência com competência, ou seja, o tempo transformado em saber, não é um gesto de nostalgia, é, isso sim, um sinal de inteligência. É a garantia que o serviço público, qualquer que ele seja, não começa do zero a cada mudança, a cada novo ciclo, a cada novo dirigente. Também não é sinal de resistência à mudança, é sim o olhar de quem já viu os desafios repetirem-se com novas roupagens, e que tentam que o entusiasmo dos que chegam não se torne imprudência. Dos que sabem que há pressas que atrasam e decisões que exigem pausa e serenidade. É saber que cada decisão tem impacto na vida de alguém.
Nunca podemos esquecer que a função pública não é um corpo abstrato. É feita de gente. Gente que trabalha, a maioria das vezes sem aplausos, sem prémios, sem manchetes, mas que está sempre lá. A fazer o seu melhor, mesmo em circunstâncias difíceis. Os tempos recentes de inundações, incêndios e pandemia da COVID-19 são o claro exemplo da importância de quem esteve, nos serviços públicos, a dar resposta, dia a dia, nos centros de saúde, hospitais, atendimentos de segurança social e habitação, só para referir alguns dos intervenientes em catástrofes na nossa Região, que nunca deixaram ninguém para trás. Dada a minha experiência profissional e política, permitam-me destacar os assistentes sociais e demais intervenientes na área social em sentido lato, que foram e são o rosto da esperança para tantas e tantas pessoas.
Num tempo em que a confiança nas instituições é frágil, o serviço público tem de ser um farol de integridade. Com a certeza de que o futuro da função pública será o reflexo das pessoas que nela acreditarem e, mais do que tudo, das pessoas que dela fizerem parte. Se for feita de pessoas sem competência e sem empatia, será somente uma engrenagem sem alma. Mas se for feita de pessoas com vocação e ética, será uma força transformadora, capaz de reconstruir a confiança entre cidadãos e instituições.
Por outro lado, é importante mostrar às novas gerações que trabalhar no setor público pode ser tão desafiador, criativo e inspirador quanto qualquer outro setor. E talvez até mais, porque está ao serviço de todos.
30 anos depois, continuo a acreditar que, no serviço público e na vida em geral, a ética, a verdade, a competência e a dedicação são os alicerces de uma sociedade justa e solidária.