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Crónicas

Quando sentir se tornou perigoso

Cada forma de humilhação, cada riso às custas de alguém, é mais do que um ato cruel: é uma quebra no sistema imunitário emocional da humanidade

Teria seis anos, talvez sete. Estava sentado no banco do parque, os olhos marejados. Antes que as lágrimas caíssem, o pai aproximou-se e gritou-lhe:

- Pareces uma menina. Nem te atrevas a chorar! Os homens não choram! Defende-te!

A criança engoliu o choro. E nesse instante, aprendeu que sentir é fraqueza. Que mostrar dor é motivo de vergonha. Que o amor, quando exposto, dói mais do que o murro.

O bullying começa muitas vezes nestes gestos, nestas frases normalizadas (e misóginas, já agora), no medo que os adultos têm de sentir, reconhecer, verbalizar e expor as suas próprias emoções.

Enquanto jornalista, recebo cada vez mais denúncias e histórias de vítimas, e de quem procura compreender o que está a acontecer nas famílias, nas escolas, na sociedade.

O que começa como gozo ou exclusão transforma-se, mais cedo ou mais tarde, em violência doméstica, em relações de poder, abuso e medo que se perpetuam.

Na FNAC Talk da Madalena Aleluia, “Temos Voz”, ficou claro que as crianças estão hoje expostas a formas de humilhação muito mais permanentes e normalizadas, amplificadas pelas redes sociais e pelo silêncio de muitos adultos que ainda não sabem o que fazer quando vêem acontecer.

Vivemos num tempo em que o bullying já tem nome, hashtags, protocolos e linhas de apoio. Mas continua a nascer no mesmo lugar: nos ambientes que toleram a humilhação e nas pessoas que ainda não aprenderam a lidar com a diferença, a sensibilidade e a vulnerabilidade. Chamamos bullying às agressões intencionais e continuadas entre crianças, mas esquecemo-nos de que há adultos que repetem o mesmo padrão, quando ridicularizam, de forma subtil ou descarada, o que desconhecem, não compreendem; quando impõem silêncio ao sentir; quando confundem autoridade com humilhação e preconceito (como fazem até, muitos agentes políticos).

Não é só em casa. Muitas vezes, são também os próprios professores, inconscientes, exaustos, e ainda assim formadores de mundos, que alimentam o ciclo. Quando comparam uma criança com outra, quando dizem em voz alta: “Estragas sempre tudo” ou “Olhem para o Inês, ela sim sabe comportar-se.” Palavras assim cristalizam. Transformam-se em ecos dentro da mente de uma criança que, no fundo, só queria ser vista e reconhecida, não avaliada e julgada. Somos humanos, precisamos de vínculos. Seguros!

O bullying não é apenas o pontapé, o empurrão, o riso no recreio. É o silêncio cúmplice, o olhar que desvia, a frase que invalida, o modelo que os adultos oferecem.

Como lembra Dan Olweus, o investigador que mais estudou o fenómeno, “o bullying é um problema de todo o grupo, não apenas de duas crianças.”

Quando uma escola ignora, relativiza ou se limita a castigar, sem compreender o sistema que alimenta a violência, o que faz é perpetuar o desequilíbrio de poder onde o bullying nasce.

Os últimos avanços na área do neurodesenvolvimento demonstram que as crianças não se tornam aquilo que dizemos; tornam-se aquilo que somos.

E, como explica o Dr. Stephen Porges, o sistema nervoso das crianças, através da neurocepção, está constantemente a avaliar se o mundo é seguro ou ameaçador.

Quando o ambiente é hostil, o corpo interpreta o perigo antes mesmo da mente o compreender. A criança começa a viver em estado de alerta, num ciclo interno de medo e defesa, incapaz de relaxar, aprender, confiar. O sistema nervoso ativa então respostas de sobrevivência: luta, fuga ou congelamento.

O Dr. Porges explica que só quando o corpo sente segurança, através do olhar empático, do tom de voz e da presença calma dos adultos, o cérebro volta a abrir-se à aprendizagem e à empatia. É por isso que uma relação segura cura mais do que qualquer outra coisa.

Além disso, autoestima é o nosso sistema imunitário social. É ela que nos protege das comparações, das críticas e da vergonha. Quando o bullying acontece, é ela que primeiro adoece. E uma criança sem autoestima é uma criança vulnerável à rejeição, dependente da aprovação externa, incapaz de confiar no seu próprio valor.

A investigadora Brené Brown lembra-nos que “a vergonha é o terreno fértil do bullying.”

E é. Quanto mais envergonhamos as crianças (os adultos também!), por serem sensíveis, por falharem, por sentirem, mais alimentamos o medo e a necessidade de dominar o outro para esconder a própria dor. A vergonha é a raiz invisível de uma sociedade que ainda confunde dureza com força, e silêncio com equilíbrio.

E quem tem uma criança vítima em casa, bem pode mostrar-lhe, sem hesitar: “O que sentes é importante. Estás segura aqui.”

Tantas crianças e adultos que crescem a acreditar que sentir é perigoso. E talvez seja por isso que o mundo parece blindado, a girar sobre umbigos, a defender-se tanto, a empatizar e a amar tão pouco.

E os adultos, todos nós, temos de parar de exigir obediência. Porque a obediência é o reflexo do medo, não da confiança.

Precisamos de aprender a investigar necessidades, não a punir comportamentos.

Não somos o nosso comportamento. Ele é apenas a forma como comunicamos necessidades não satisfeitas, que são muito diferentes de desejos.

Precisamos de conectar e escutar antes de corrigir. Compreender antes de julgar. O importante não é ter razão, é fazer o que é certo a cada momento.

O bullying é uma ferida coletiva. Um retrato de como, enquanto sociedade estamos a falhar. Não somos presentes, ainda não aprendemos a lidar com a diferença nem a educar para a empatia.

Queremos crianças resilientes, mas esquecemo-nos de lhes dar permissão para sentir, de lhes mostrar como se faz.

Queremos escolas e ambientes desportivos seguros, mas perpetuamos a cultura da comparação, da nota, da performance, da competição exacerbada.

Enquanto continuarmos a confundir sensibilidade com fraqueza e poder com dominação, o bullying vai continuar a mudar de forma, mas nunca de essência. Porque no fundo, ele é o medo disfarçado de força.

E só o amor consciente, incondicional, aquele que não precisa de vencer, é capaz de o transformar.