Democracia (muito) frágil
Acredito que a maioria dos cidadãos de hoje já reconhece quem “bem” os persuade e quem manipula
1. Escrever sobre democracia e um dos seus símbolos máximos (as eleições) – que vão ser novamente realizadas a poucos dias de distância – no ano em que celebraremos os 50 anos do 25 de Abril de 1974, não é tarefa fácil (e principalmente na atual conjuntura) e por isso vacilei fazê-lo, mas aqui vai.
É percetível por quase todos que atravessamos mais um momento de crise no nosso regime democrático. Alguns apelidam-no de “recessão democrática”, outros de “enfraquecimento das instituições democráticas” e outros ainda da circunstância em que os populismos, depois de perto de quase 3 anos de uma pandemia de saúde pública, tentam (ou “atacam”, nas palavras de António Costa), num sistema onde quase tudo é permitido e muito frágil, (re)adquirir uma nova centralidade na vida política, posicionando-se como o novo paradigma à escala global.
Apesar de pequeno e periférico, Portugal, como é natural, não estava imune a esta investida ecuménica e a erosão democrática do atual regime é um facto a olhos vistos, não obstante os sucessivos alertas a que poucos deram efetivo valor. Uma democracia não adoece da noite para o dia, mas para alguns é fácil (e muito cómodo) fingir que não se vê aquilo que está a suceder e assobiar para o lado. A este respeito, o ainda líder do Governo e ex-secretário-geral do Partido Socialista, não assume qualquer responsabilidade e aparenta ter estado ausente/distraído nos últimos anos, quando os populistas (alimentando-se do medo e dos sucessivos erros, lapsos e alguma boa dose de incompetência, mas também de “casos e casinhos” de diversos elementos dos seus executivos) muito cresceram e um concreto partido se afirmou como a terceira força política do país, com mais de 7% dos votos, e passou de 1 para 12 deputados. (Tudo aponta que deve crescer mais no dia 10 de março).
Neste pacato e maravilhoso cantinho à beira-mar plantado onde é reconhecida a arte de bem receber, pela simpatia, boa disposição, prestabilidade a amabilidade dos portugueses (já premiado internacionalmente e recomendado além fronteiras) – e onde há agora uma sequência de ‘espaventosos’ acontecimentos políticos (mas também no soberano campo de ação da Justiça) que procuram eclipsar outros, numa espiral aparentemente infinita que catalisa a quase totalidade da atenção dos portugueses (e que já embucha o espaço mediático) –, exibem-se (e alguns, escondem-se) os novos ideólogos e líderes de um populismo que deseja a todo o custo, e utilizando todos os meios lícitos ou ilícitos, chegar ao poder.
Os sucessos e erros políticos do passado recente estão prestes a serem sentenciados em mais um ato eleitoral, depois de um ciclo político mais curto, e as narrativas distópicas, negativas, alternativas e ilusionistas parecem captar mais facilmente a atenção de parte significativa dos eleitores. Os mais jovens estão “ébrios” com a forma espalhafatosa (para não dizer “tola”) como se comporta um dos candidatos. Parece ter caído em desuso – ou já está mesmo fora de moda – quer o “otimismo realista” quer o “otimista irritante” popularizado por alguns bem conhecidos protagonistas da classe política portuguesa. Muitos já deixaram de acreditar nas instituições políticas e num regime que já não é uma democracia plena. A pequena ou grande corrupção, que é notícia rotineira nos meios de comunicação social e há qual a sociedade dá especial atenção, continua a minar/enfraquecer a nossa democracia. Tal como a nossa vida que é muito frágil e ninguém tem o amanhã garantido, os sonhos dos grandes democratas do século XX parecem agora querer cair como uma espécie de efeito em cascata (efeito dominó) – com calendarizados e bem organizados acontecimentos – e muitos estão a tentar fazer da Europa o novo cemitério da democracia liberal representativa, com consequências imprevisíveis e sacrificando o valor mais precioso, a liberdade.
2. Finalmente acabaram os 30 debates transmitidos nos canais televisivos para estas (“primeiras”, dizem alguns) Legislativas de 2024, 28 deles opondo dois líderes partidários e 2 com todos os partidos, primeiro entre os que não têm (ainda) assento parlamentar e depois com os que já estão representados no Parlamento nacional. Confesso que não os vi todos – não aguentaria –, mas fiz questão de assistir ao do dia 19 de fevereiro, que opunha Pedro Nuno Santos (PS) e Luís Montenegro (AD), numa transmissão feita em simultâneo pela RTP, SIC e TVI, e mais cerca de uma dezena, com especial enfoque num certo candidato para tentar perceber que tido (e qualidade) de argumentação iria exibir e operar para tentar levar de vencidos os seus adversários.
Para além da desaprovação do molde seguido nos debates e também relativamente aos temas/problemas/questões que intencionalmente ficaram de lado, critico da mesma forma, e particularmente, as notas/avaliação – e tentativa de justificação – dadas pela maioria dos comentadores políticos (desde ex-ministros, conselheiros de Estado,…) e jornalistas que durante horas articularam raciocínios para tentarem formar/doutrinar a opinião pública. Creio que com perto de 50 anos de liberdade e democracia instalada, os portugueses que votam já têm a faculdade e maturidade suficientes para escutarem e avaliarem (pelo menos, “razoavelmente”) a prestação dos candidatos e elegerem/decidirem quem melhor os defende, assim como os seus interesses e valores, e os deve representar no principal órgão legislativo nacional. Acredito que a maioria dos cidadãos de hoje já reconhece quem “bem” os persuade e quem manipula, isto é, quem lhes fala e é um “homem de bem” e quem descura a veracidade e credibilidade das ideias/propostas submetidas a sufrágio.
Como é óbvio, a moralidade também interfere (e intervém) ao nível da confiabilidade e honorabilidade do candidato a deputado da nação e ao cargo de primeiro-ministro. É verdade que a arte de bem falar, de agradar, de demonstrar eloquência diante de um público para o conquistar (retórica) é crucial para que um político sobreviva na arena democrática – e, certamente, o adversário fará o mesmo –, mas agora existem novas técnicas e ferramentas que muitos estão a aprender a explorar. Em certos candidatos é notória uma boa preparação e o estudo das técnicas discursivas que permitem provocar/aumentar a adesão do auditório às promessas/teses apresentadas. Outros, e em particular um deles, difere no estilo e não é para mim agradável nem um prazer ver e muito menos ouvir. Discorrem da sua boca consecutivas falácias informais (ad hominem, falsos dilemas, derrapagem, ad populum, ad ignorantiam, boneco de palha…), joga talentosamente com as emoções do seu específico eleitorado, ilude-o, não justifica adequadamente as suas ideias e propostas (com provas claras e pertinentes), recorre reiteradamente à manipulação baseada numa ideologia levada ao extremo e sustenta toda a sua “linguagem de cortesão” numa propaganda que fomenta o ódio, racista e xenófoba. É pragmático, calculista, malabarista, ótimo no duelo oratório e na retórica da sedução, mas péssimo no conteúdo, na justificação daquilo que promete e decididamente no fazer. Tentar descobrir as reais intenções sobre as matérias de que fala, sobre o (quase) “tudo que promete” – e o muito que inventa e mente –, é para os comentadores/analistas o grande desafio destes novos e estranhos tempos em que se procura quebrar o sistema. Em suma, e como disse Churchill, é um erro pensarmos que “a democracia é perfeita ou absolutamente sábia”. Bem pelo contrário, ela está hoje encurralada entre a espada e a parede e lá vai tentando resistir, conforme pode, a novas formas de tecnopopulismo que tudo fazem para tomar o poder onde ele parece frágil e de fácil acesso.