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Crónicas

Pensamentos pós-eleitorais

1. Escrevo estas linhas sem fazer a mais pálida ideia do resultado das eleições de ontem. Permitam-me então que escreva ao sabor dos dedos na perfeita ignorância de que raio de país teremos hoje.

2. Durante a campanha vi-me envolvido numa busca incansável que me levou de aventura em aventura. De raides a debaixo da cama a expedições atrás da cómoda. De escavações em gavetas profundas aos confins misteriosos dos bolsos do meu casaco. Não deixei pedra sobre pedra. Avancei, determinado, até reinos esquecidos, percorri labirintos de armazéns perdidos, investiguei cada canto do sótão e examinei minuciosamente a cave. Empreendi uma jornada telefónica épica, na esperança de um esquecimento revelador, e até me aventurei nos domínios dos surrealismo e do subconsciente. E, apesar desta odisseia, continuo a confrontar-me com um mistério profundo: não consigo encontrar em lado nenhum a mais-valia e o carisma de Paulo Cafôfo.

3. Uma das coisas que ficou bem patente nesta polarizadíssima campanha eleitoral, que terminou na passada sexta-feira, foram os fantasmas pelos quais vive a esquerda e os consequentes medos que pretende passar aos eleitores.

Numa análise incisiva e contundente, não é difícil concluir de uma prática sistemática manipular narrativas visando fomentar uma agenda ideológica que transcende os limites da racionalidade e do pragmatismo político. A esquerda está empenhada numa espécie de engenharia social que busca reestruturar profundamente as sociedades sob o pretexto de combater injustiças, muitas das quais são vistas pelos seus detratores como exageradas ou diretamente fabricadas.

A esquerda adora inflamar tensões e promover noções de opressão sistemática que são, na maior parte das vezes, desproporcionais ou distorcidas para servir o seu argumentário. Questões de desigualdade, racismo e direitos das minorias são, sem dúvida, questões importantes; no entanto, a abordagem à esquerda tem frequentemente a ver com o polarizar, ao invés de buscar um terreno comum e soluções construtivas. É por esta via que chegamos a verdadeiras culturas de cancelamento e a uma imposição de conformidade ideológica que ameaça a liberdade de expressão e o debate aberto.

Depois temos aquele enorme desejo de expandir o controlo do Estado sobre a vida das pessoas, seja por meio de políticas económicas socializantes que enfraquecem a iniciativa privada e a inovação, seja por intermédio de regulamentações que limitam direitos individuais em nome do bem coletivo. A esquerda adora uma visão paternalista do governo, onde os cidadãos são vistos como incapazes de tomar decisões por si próprios, necessitando da intervenção estatal para “corrigir” desigualdades e comportamentos considerados inadequados.

À esquerda mora uma enorme incapacidade de governar de maneira equilibrada e respeitosa pelas liberdades individuais. Sob a fachada de um pretenso progressismo e justiça social, esconde-se uma agenda autoritária que visa restringir a liberdade, coibir a diversidade de pensamento e centralizar o poder de forma perigosa. Se não forem constantemente verificados, estes impulsos podem levar a sociedades menos livres, menos prósperas e mais divididas.

4. Calculo que muitos tenham ido atrás do voto útil, quando votaram ontem. O conceito de “voto útil” é frequentemente apresentado como a solução para os males da democracia. Segundo essa lógica, distorcida, os eleitores devem votar em candidatos com maiores hipóteses de vencer, mesmo que não representem totalmente os seus ideais, para evitar que outros ganhem as eleições. No entanto, esta visão simplista ignora diversas “nuances” do sistema eleitoral e das suas falhas, tornando o voto útil uma estratégia questionável e, muitas vezes, ineficaz.

No centro de uma democracia está a ideia de que o governo reflete a vontade popular. O voto útil vai contra esta premissa ao incentivar a escolha não pela convicção, mas pela conveniência. Ela leva sempre a um resultado que mais reflete uma estratégia colectiva de como evitar o pior cenário do que um reflexo das aspirações e desejos dos cidadãos. O resultado é que os eleitos ficam com a sua legitimidade corroída, baseada num consenso tático e não num mandato autêntico.

O voto útil favorece o “status quo”, uma vez que candidatos e partidos mais visíveis ou que contam com mais recursos — frequentemente os já estabelecidos — são a opção considerada mais “segura”. Isto cria barreiras significativas a novas propostas ou ideias inovadoras e reformistas. A longo prazo, gera uma estagnação política, onde as mudanças necessárias para responder a desafios emergentes são adiadas ou ignoradas, por falta de representação de vozes alternativas e disruptivas.

O cálculo por detrás do voto útil deixa pouco espaço para a paixão e para o entusiasmo político, elementos vitais a uma democracia vibrante e engajada. Quando os eleitores consideram o seu voto uma mera tarefa de minimização de danos e não uma expressão do que acreditam, o desencanto com o processo político cresce. A longo prazo, gera apatia e reduz a participação eleitoral, enfraquecendo a democracia.

A prática do voto útil está sempre baseada em previsões eleitorais propensas a erros. A dinâmica eleitoral pode mudar rapidamente, e aquilo que parece uma opção estratégica segura num dado momento, pode se mostrar, no fim de contas, um erro táctico. Isto é agravado pelo facto de que as sondagens podem falhar e indicar o resultado errado. Deste modo, o voto útil não é apenas eticamente questionável, mas também uma estratégia de alto risco, baseada em suposições que podem não se materializar.

O voto útil promove uma corrida infindável, onde as candidaturas competem, não pela superioridade das suas propostas, mas pela sua capacidade de se apresentarem como o “menos pior”. Isso desestimula a inovação política e a responsabilidade, dado que os candidatos se concentram menos em oferecer soluções reais e mais em manobras para ganhar votos.

Em vez de se submeterem à lógica do “voto útil”, os eleitores deveriam procurar alternativas que fortaleçam a democracia e a representatividade. Procurar saber das propostas dos candidatos, dos seus históricos e das suas posições relativamente aos temas que lhes importam, escolhendo aquele que melhor representa os seus ideais e interesses.

5. Aparecia há dias, nas redes sociais, um movimento que dá pelo nome de “Art Activist Barbie”. O projeto utiliza a icónica Barbie como veículo para discutir questões de género, representação e diversidade na arte. Como sempre, porque emana do “wokismo” simplifica excessivamente questões complexas e desvia a atenção de ações mais pragmáticas e profundas.

O foco em símbolos culturais como a Barbie, embora possa gerar discussão nas redes sociais, pode não levar a mudanças concretas nas políticas institucionais ou nas práticas que sustentam desigualdades sistémicas. Pode-se também argumentar que estas abordagens arriscam reduzir o ativismo a gestos simbólicos.

Estes “wokismos” levam à proliferação de iniciativas com pouco sentido, focadas em questões de identidade e representação que só reforçam divisões ao invés de fomentar a inclusão. A ênfase em identidades específicas e a politização de quase todos os aspectos da vida cultural, levam a um ambiente onde o diálogo é substituído pelo confronto, e onde a busca pelo consenso é ofuscada pela competição entre diferentes grupos por reconhecimento e validação.

Vem isto a propósito deste modismo ter levado alguém a fotografar a Estátua da Justiça à entrada do Tribunal do Funchal, como exemplo de uma arte oficial associada a discriminação.

Nem sei por onde começar nesta odisseia de sensibilidades feridas e indignações inflamadas sobre a representação feminina da Justiça. Afinal, num mundo onde cada escolha é um campo minado em termos culturais, a imagem da Justiça como mulher parece ser a última gota para os bastiões do bom senso e da masculinidade inabalável.

Entremos neste reino do absurdo, onde a simples ideia de personificar a Justiça como uma mulher parece ser uma afronta. Esqueça “Themis” e a sua balança; ignore “Justitia” com a sua espada e venda sobre os olhos. Não, não, estas figuras milenares são, obviamente, invenções recentes de cultura masculinizada que o “wokismo” combaterá e não deixará passar.

Que ironia sublime é testemunhar as massas aflitas, desesperadas por desenterrar qualquer vestígio de feminilidade em símbolos de virtude, como se a mera sugestão de que uma mulher possa personificar algo tão nobre quanto a justiça fosse um ataque frontal à razão.

A Justiça, essa dama imparcial, tem sido feminina desde eras imemoriais, a sua representação atravessa culturas e milénios. Mas, de repente, nesta nossa era iluminada de debates acalorados nas redes sociais e correspondentes guerras culturais, a sua identidade é vista não como um testamento da universalidade das suas virtudes, mas como um campo de batalha para este discurso pós-moderno sem sentido.

Enquanto alguns se contorcem em agonia pela ideia de uma Justiça feminina, devemo-nos perguntar: esta indignação é verdadeiramente com a representação de género, ou é apenas uma distração conveniente da própria busca pela justiça? Se a maior preocupação de alguns é o género da personificação da Justiça, talvez seja hora de reavaliar não apenas as nossas representações simbólicas, mas também as nossas prioridades.

Brindemos a esses críticos da representação feminina da Justiça, que, do alto da sua sabedoria infinita, falharam gloriosamente em perceber que a verdadeira questão não é sobre género, mas sim sobre o que a Justiça, essa dama antiga e venerável, representa: equidade, imparcialidade e a busca incessante pela verdade.

É que só assim estes idiotas podem superar o seu espanto e visão míope e conseguir, finalmente, ver a floresta por entre as árvores.