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Autonomia: tempos vertiginosos, tempos perigosos?

Ora, se a ignorância é sempre má conselheira, também pode ser muito atrevida. E aqui está o busílis da questão

Três pontos prévios. Primeiro: se a História mostra que certos momentos impõem acções imediatas, também revela que a capacidade de analisar a realidade, com conhecimento e ponderação, tem uma influência directamente proporcional na eficácia futura das decisões e acções executadas “in illo tempore”.

Segundo: a respeito dos acontecimentos político-judiciais (a expressão não é despicienda), baseio-me apenas no que é público e transmitido pelos órgãos de comunicação social. Isto limita a compreensão, mas não obscurece os princípios. Da presunção de inocência, à defesa intransigente da Liberdade, da Democracia e dos órgãos de poder eleitos e em pleno exercício de funções.

Terceiro: escrevo sem pensar em pessoas, mas apenas no que considero ser um Bem-superior, que é a Autonomia Político-Administrativa madeirense. Porque é bem provável que muito daquilo que se realizar nos próximos dois meses a marque durante décadas.

Dito isto, temo (e não me surpreenderá) que os acontecimentos recentes possam causar danos na própria Ideia de Autonomia - isto numa fase em que já se ouvia com frequência o verbo “rever” a propósito do seu quadro normativo -, devendo até admitir-se que, no imediato, poderão condicionar (enviesar?) as interpretações jurídicas em que aquela se fundamenta e legitima. Indícios não faltam.

Daí a necessidade de reflexão, juntando até, no extremo, a presente e inédita experiência àquela que resultou do Covid (e que dúvidas também levantou sobre os poderes autonómicos). Sempre no sentido de defender, aperfeiçoar e fazer progredir a Autonomia Político-Administrativa. Porque se as crises podem promover a consolidação de valores e princípios, é prudente assumir que não o fazem apenas entre os autonomistas.

Para avançar, é fundamental que todos percebam - todos! - que a Autonomia é um Bem em si mesmo, tem vida própria, está para além das circunstâncias e - acima de tudo - não tem donos. Este último foi (é?), aliás, um preconceito, que o tempo ajudou a consolidar em muita gente, não só nos habituais “especialistas” de fora, mas também em entes cá dentro. As razões para isso - algumas objectivas - ultrapassam os limites destas linhas, embora se deva reconhecer que na última década, também a esse respeito, algumas coisas mudaram.

Tem sido interessante verificar como no continente português só agora muitos descobriram a existência da Autonomia madeirense. Infelizmente, porém, continuam a ser demasiados aqueles que revelam saber pouco (ou nada?) a seu respeito. Esta ignorância provocou situações inacreditáveis, desde os usuais enganos em designações e nomenclaturas, passando por confusões a propósito de poderes instituídos, chegando ao ponto de se desconhecer (!) quantos anos tinha uma legislatura na Madeira.

Dos ditos - sempre sofisticados e sapientes - especialistas continentais, ouvi um pouco de tudo, alguns (felizmente não todos) completamente inundados de preconceitos (nem sei se provincianos ou neocoloniais), mas a maior parte deles sem nunca sequer terem passado pelo Arquipélago mais de 48h seguidas.

Ora, se a ignorância é sempre má conselheira, também pode ser muito atrevida. E aqui está o busílis da questão. Esta onda - se não for combatida - ajudará a criar um ambiente desfavorável à Autonomia (em crescendo e difundido em órgãos de comunicação social).

Daí ser essencial que às soluções que se encontrarem e às vias que se seguirem, imperiosamente respaldadas na Constituição e no Estatuto Político, se associem explicações claras. Ou seja: aproveite-se este momento para realizar também uma pedagogia da Autonomia. Fazê-lo, revelar-se-á, a prazo, de uma suprema importância. Porque depois deste tempo, outro tempo virá.

Pode mesmo começar-se por alguns dos Partidos representados na ALRAM, que permitem infundadas (e constantes) intervenções de líderes nacionais - nenhum deles eleito - as quais, para quem assiste, transmitem uma ideia de menorização (de todo injustificada) dos seus líderes regionais (que já deram bastas provas de saber pensar pela sua própria cabeça). E isto sem nunca esquecer, embora a outro nível, o próprio Presidente da República, por vezes algo propenso a intervenções inexplicáveis.

De resto, quanto à defesa da nossa Autonomia, voltando à História, a coerência no pensamento e na doutrina, a convicção na decisão e a certeza e a firmeza na acção farão o resto.

Um exemplo. É inequívoco que a apresentação de um pedido de exoneração por parte do Presidente do Governo - sejam quais forem os seus motivos - implica a demissão do Governo. Qualquer outra coisa é… estranha. Mas daqui decorre a dissolução do Parlamento? Não (e seria contranatura se o provocasse). Desde logo – e note-se: em defesa da Autonomia e dos órgãos de Governo próprio – porque não se pode colocar em causa a instituída separação dos poderes, ainda por cima quando possuímos um sistema político autonómico de genuína base parlamentar.

A este respeito, é curioso verificar que durante anos ouviram-se acusações de que a Assembleia - órgão máximo da Autonomia, convém nunca esquecer, onde se encontram os representantes sufragados pelo Povo madeirense - não conseguia ter “Carta de Alforria” do Governo. Agora, quando a ALRAM tem uma oportunidade (e toda a legitimidade) para existir enquanto núcleo do poder autonómico, com que fundamento poderá ser coarta a esse exercício?

A outro nível, mas que convém destrinçar, estarão as putativas avidezes (de quem está ou de quem quer entrar); a hipótese de novas eleições; as condições de funcionamento de um novo Governo; as consequências económicas, financeiras e sociais para a Região; e até os efeitos de um alegado justicialismo, assim como o eventual uso de bens e forças (com ou sem o conhecimento das hierarquias). Mas tudo isto já será outra História.