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Austerlitz

A fruição da arquitectura não se faz apenas com a visão

Vai longe o tempo em que só casamentos, aniversários ou viagens de férias a lugares exóticos constituíam ocasiões para usar a máquina fotográfica. Hoje, praticamente tudo o que desperta a nossa atenção é instagramável – isto é, acaba transformado em imagem no telemóvel. A tal ponto que o próprio acto de fotografar parece substituir-se à experiência do momento, empobrecendo-a, reduzindo-a a uma imagem que, mais tarde, não evocará senão a data da sua própria captura. Provavelmente, esta acabará por desaguar nas redes sociais diluindo-se numa miríade de outras postas a circular por publicitários, influencers, analfabetos funcionais, intelectuais, artistas, humoristas e também arquitectos.

Estes últimos tendem a esquecer que a fotografia é, talvez, o meio mais desadequado e empobrecedor de representar a arquitectura. Quantas vezes fachadas e interiores maquilhados a photoshop se revelam, quando vistos ao vivo, uma confrangedora desilusão? Se o fotógrafo for competente, a fotografia não representará o edifício, representar-se-á a si própria como objecto de arte. Se o fotógrafo for medíocre, a fotografia não representará nem o edifício nem a si própria.

Tudo isto resulta de um facto que também não deve ser esquecido: a fruição da arquitectura não se faz apenas com a visão. Na verdade, ela envolve todo o corpo e mais três sentidos: audição, olfacto e tacto – ecos, aromas, a aspereza ou temperatura dos materiais onde as mãos pousam, os próprios movimentos que o espaço induz no corpo que percorre o espaço. A fruição da arquitectura é semelhante ao que um papagaio do marketing chamaria experiência imersiva.

Costuma dizer-se que uma imagem vale mais que mil palavras, mas, no mundo saturado de imagens em que vivemos, uma palavra vale mais que mil imagens. Pensemos, por exemplo, em palavras como pedra, céu, água, vento, noite. Pensemos em tudo o que evoca a sua abstracta e misteriosa ressonância. Com elas podemos falar de arquitectura, descrever uma catedral, um museu ou a mais humilde construção que, em incerto dia, nos abrigou da chuva. Tudo o que existe no mundo se deixa representar pelas palavras. Até a música – talvez a mais etérea de todas as artes. A quem duvide – e queira maravilhar-se com a prosa dos que sabem usá-las para falar de arquitectura – recomendo a leitura do último romance de W.G. Sebald: Austerlitz.