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O beijo amargo da vitória

A seleção espanhola venceu, a 20 de agosto de 2023, o Campeonato do Mundo de Futebol Feminino da FIFA, coorganizado pela Austrália e Nova Zelândia. Foi uma vitória inédita para a Espanha, em 9 edições deste campeonato – sendo que, na sua versão masculina, já se realizaram 22 edições. Bateram-se recordes de adeptos/as nos estádios, tendo sido quase 2 milhões no total. Foi, também, o campeonato feminino com mais visibilidade, especialmente na Europa.

Apesar dos progressos, vieram ao de cima as desigualdades que ainda persistem no desporto feminino, seja na visibilidade, na remuneração e nas condições de formação, assim como na ainda baixa percentagem de mulheres presidentes, vice-presidentes, membros e dirigentes das confederações desportivas europeias. A Comissão Europeia afirma que, até meados de 2026, pelo menos 40% destes lugares devem ser ocupados por mulheres. Ainda assim, esta meta está longe de ser alcançada – e, se assim continuarmos, dificilmente será.

Segundo um estudo da rede internacional Futebol contra o Racismo na Europa (FARE), apenas 3,7% das posições de liderança no futebol europeu são ocupadas por mulheres. Se nos debruçarmos sobre as remunerações, uma análise da CNN demonstrou que, em média, as jogadoras do Campeonato do Mundo de Futebol Feminino da FIFA de 2023 ganharam apenas 25 centavos para cada dólar ganho pelos jogadores no campeonato equivalente de 2022. Apesar de nos Estados Unidos, as jogadoras, através da sua luta pela paridade, terem conseguido obter um acordo coletivo que garante a igualdade de remuneração entre os jogadores masculinos e femininos da equipa nacional, muitas federações internacionais continuam a não oferecer uma remuneração justa às suas atletas.

Há ainda uma longa distância a percorrer até à igualdade e é fundamental celebrar todas as vitórias ao longo do caminho. No entanto, a festa da Seleção Espanhola de Futebol Feminino foi assombrada pelo beijo não consentido de Luis Rubiales, presidente da Federação Espanhola de Futebol (suspenso pela FIFA), a Jenni Hermoso, jogadora da seleção espanhola. Enquanto Rubiales disse que o beijo foi “espontâneo, mútuo, eufórico e consentido”, Hermoso respondeu que sentiu-se “vulnerável e vítima de um ato impulsivo, sexista e deslocado, sem qualquer consentimento”, não tendo sido respeitada. Este escândalo tornou-se viral, assim como todo o “sangue” que tem corrido desde então, e as conquistas alcançadas pelo futebol feminino neste campeonato do mundo, passaram a segundo plano.

É importante perceber que, na raiz do assédio sexual contra as mulheres, – sendo mais frequente do que se pensa, no mundo ocidental –, está a cultura da objetificação feminina. No entanto, espero que a indignação coletiva que se faz sentir contribua para uma mudança estrutural e sirva para combater a raiz dos problemas num país como Espanha, onde a violência sexual é muito prevalente, e não se esgote no “imediatismo nosso de cada dia”. Resta-me dizer que as jogadoras da Seleção Espanhola ganharam o Campeonato do Mundo. Em conjunto com todas as outras jogadoras deste campeonato, – onde a Seleção Portuguesa garantiu presença pela primeira vez e teve “direito” a jogos transmitidos na RTP ¬–, deram passos importantes em direção à igualdade no futebol. Não são vítimas nem coitadinhas. E o seu desempenho merece mais visibilidade do que um beijo amargo.