Boa Noite

Uma vida num livro que dava um filme

Obra infanto-juvenil sobre Vicente Jorge Silva foi hoje lançada

Boa noite!

Já quase tudo se disse sobre um jornalista exigente e que fez história, conciliando a missão de vida com a paixão pelo cinema, ousadia que o levou também a experimentar ser político por instantes.

Elogiaram-se já os seus méritos nos projectos inovadores e marcantes, recordaram-se as polémicas que derivaram da frontalidade destemida e a atitude que "marcou o percurso colectivo na luta pela democracia no Comércio do Funchal, fazendo de uma aventura de escassos meios uma força indomável”, como sublinhou Marcelo Rebelo de Sousa no dia da sua morte.

Mas o quase tudo deixa margem para novas descobertas, algumas bem evidentes nesta biografia de Vicente Jorge Silva editada pela Cadmus, que integra a coleção VIDAS (DES)CONHECIDAS, "projecto que nasce da vontade em investigar e homenagear as vidas de vários madeirenses que, em tantos domínios, se afirmaram como nomes incontornáveis, apresentando ou recordando aos mais jovens as suas biografias". E que se inspira colecção ILUSTRES (DES)CONHECIDOS, da IMPRENSA ACADÉMICA, que edita as obras de vários escritores da nossa terra.

O quase é campo fértil… quer para o jornalismo que sempre desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento da vida democrática, no acompanhar da história de Portugal e do mundo e na formação de conhecimento na sociedade…. Quer para os que ao longo dos últimos anos lutaram por uma imprensa livre de qualidade, lançando as bases para a informação moderna e acutilante…. Quer para os que resolvem inovar, introduzindo diálogos nas narrativas descritas, dando vida às letras e explicando conceitos, para assim reforçar a autenticidade do percurso notável e conseguir revelar aos mais novos aspectos menos mediáticos de Vicente Jorge Silva  que foi, sem dúvida,  figura ímpar no jornalismo português das últimas décadas, mas que no livro hoje lançado pela Académica da Madeira também tem página par.

Pode alguém rebelde que é nome incontornável na história da imprensa portuguesa ser uma vida desconhecida? Pode, mesmo tendo relançado e dirigido o Comércio do Funchal; criado e dirigido a Revista do Expresso; e ter co-fundado e dirigido o PÚBLICO.

Eu por exemplo desconhecia que desde menino Vicente adorava fazer perguntas; que quando não estava a brincar no atelier da família brincava à bola na companhia de um porco, galinhas e um peru; que aos 6 anos, naquela que foi a sua primeira viagem, quis ficar no Porto Santo para sempre; que via todos os filmes em exibição, mesmo os que não tinha idade para ver; que se livrou do serviço militar devido a um problema de audição; e que negociava com o censor oficial as palavras proibidas…

Mas há mais surpresas em 35 páginas que davam um filme, ou então uma série com 11 episódios, que espelham uma história que não acaba e se calhar, por isso, nem sempre entendível.

Mesmo com a inteligência artificial a ditar tendências, há verdades que a tecnologia não detecta. Aliás foi quase tentado a perceber o que que é que o ChatGPT sabia de Vicente Jorge Silva. A sucessão de erros primários esvaziou a opção.

O recurso de estimação não o reconhece como cineasta ou político, nega-lhe a paternidade da “geração rasca” e atribuí-lhe a autoria de livros que nunca publicou. Como nem tudo é mau, retive que Vicente Jorge Silva foi reconhecido pelo estilo de jornalismo marcado pela qualidade, rigor e independência. Ou pela sua abordagem analítica e reflexiva dos acontecimentos. Ou ainda pela defesa da liberdade de imprensa e procura da objectividade jornalística.

Que era conhecido pelo seu compromisso com a investigação jornalística e a denúncia de casos de corrupção e abusos de poder. Trazia à tona questões importantes e desafiar os poderes estabelecidos, levando a um jornalismo crítico e comprometido com a verdade. No geral, o jornalismo de Vicente Jorge Silva era caracterizado pela sua integridade, paixão pela profissão e busca por uma sociedade mais informada e democrática.

Mas para quê recorrer ao ChatGPT se temos Marcelo Rebelo de Sousa  de boa memória a referir que o jornalista "marcou, a transição e o caminho pós-democrático, com imaginação esfuziante, frontalidade total, humor inesgotável, e, sempre, uma inteligência e uma apetência cultural sem limites, que o fazia devorar livros e sonhar filmes e cultivar novos horizontes, ele que, no fundo, era um solitário que a vida não bafejou em momentos pessoais cruciais".

Ainda teve tempo para ser deputado, pioneiro de causas, polemista imparável, colunista lúcido e escritor de escritas dispersas", acrescenta Marcelo Rebelo de Sousa considerando que Vicente Jorge Silva, "em suma, mudou o panorama da comunicação social portuguesa", com efeitos também na política portuguesa, "sobretudo entre os anos 60 e 90" do século passado. "Nesse percurso coletivo marcou a vida de todos os que consigo se cruzaram, amigos e admiradores tal como adversários. Ninguém lhe poderia ficar indiferente", afirma o Presidente da República.

De Vicente guardamos o repto para "acordar antes que seja tarde". Ao receber o prémio Gazeta de Mérito, em 2015, foi bem claro: “É preciso voltar às raízes da inquietação e inconformismo do verdadeiro jornalismo. […] Num tempo propício à ansiedade, à angústia e à desorientação, [...] é preciso que o jornalismo desperte da sua letargia auto-satisfeita ou da complacência com os instintos rudimentares do populismo. A pedagogia da verdade dos factos, a objectividade possível para além das fixações ideológicas, a paixão do civismo que faz os homens melhores e as sociedades mais esclarecidas, a libertação das garras do baixo comércio das vulgaridades, tudo isso é essencial para o jornalismo encontrar novas razões urgentes de existir neste planeta tão perturbado.”

A sua vida dava um filme mas para já há o livro hoje lançado que de certa forma cumpre a máxima do seu colega jornalista Jorge Leitão Ramos que um dia escreveu que "como cineasta Vicente Jorge Silva foi bastante estimulante, mas como jornalista foi decisivo".

O retrato do menino que cresceu no mundo estático da fotografia, mas que se apaixonou pela imagem em movimento. Ou as histórias que fabricava na sua cabeça, e que passou a colocá-las no papel, sempre com o pragmatismo, a irreverência e a exigência que o caracterizaram estão dentro da obra assinada pelo Rúben Castro e pelo Manuel Róldan. Mas enquanto falamos alto durante a apresentação desta tarde, o eterno Vicente segredava-nos… “Ouço o mar ao fundo. Como se fosse um filme.”