Crónicas

“Pessoas de bem”

1. Disco: A música madeirense está bem e recomenda-se. Cresceu, está madura e a colheita é óptima. Ou não estivesse pela segunda semana consecutiva a falar de projectos dos nossos. De Man on a Couch… a Napa. Recria-se o nome, mas não se perde nada pelo caminho. Muda-se porque se assume o português como língua. “Logo se Vê” é o seu segundo trabalho. Consistente, seguro e muito bom. Estamos bem.

2. Livro: Já aqui o escrevi e não me cansarei de o repetir: adoro quando por acaso descubro um autor que desconhecia. Aconteceu outra vez, agora com Sue Monk Kidd e o seu maravilhoso “A Vida Secreta das Abelhas”. Um romance fabuloso com tudo o seu lugar de modo a nos envolver, a fazer com que queiramos ler mais e mais.

3. Embora a natureza e a definição de populismo sejam fonte de considerável desacordo, parece haver um consenso de que representa uma ameaça à democracia liberal. Na busca de respostas apropriadas, no entanto, a maioria recorre a estratégias de combate a partidos antidemocráticos ou extremistas, sem considerar as importantes diferenças entre os partidos populistas e outros actores políticos congéneres. Os dois tipos centrais de defesa — a defesa democrática militante ‘intolerante’ e a defesa ‘tolerante’ — não oferecem reacção satisfatória aos partidos populistas, precisamente porque foram concebidos e desenvolvidos como respostas a outro tipo de fenómenos.

O populismo não cai do céu. Tem razões para surgir e razões que o fazem desaparecer. Sempre que os principais partidos políticos — maioritariamente partidos de centro-esquerda e centro-direita — falham em atender às preocupações dos eleitores e responder com políticas distintas, quando deixam de ser reformistas, adaptando as políticas aos tempos, o populismo ocupa o espaço da revolta de sectores que se sentem desacompanhados.

Para os políticos e governos populistas as instituições formais da democracia liberal são criações corruptas geradas por aristocracias, e sistematicamente esvaziam e minam as instituições, como tribunais, agências reguladoras, serviços de inteligência, imprensa e assim por diante. Justificam esses ataques como a substituição de instituições desacreditadas e corruptas por outras que servem “o povo”. Os populistas apoiam-se em duas reivindicações: primeiro, que as “pessoas de bem” de um país (o termo pode variar querendo isso dizer seja lá o que for) estão presas num conflito com as “elites” e, segundo, que nada deve restringir a vontade das “pessoas de bem”. Em vez de verem a actividade política como uma disputa entre diferentes posições, os populistas argumentam que a arena é um campo de batalha moral entre o “seu” certo e o errado dos “outros”, isto é, entre as “pessoas de bem” de um país e as elites, ou outros grupos que os populistas consideram estranhos, como minorias étnicas e religiosas, imigrantes e criminosos. O anti-elitismo aparece sempre com grande destaque na retórica populista, e o conflito moral entre as “pessoas de bem” e a “elite corrupta” é um dos fios mais importantes das suas narrativas. Dividem o todo entre os “bons” e os “maus”, e tudo tem de ser uma coisa ou a outra. Não é que as elites não existam, nem que a corrupção seja inexistente. Mas o panorama global não se resume só a isso. Seria de muito pouco resumir o que se passa desta forma.

Há um populismo cultural que defende que as “pessoas de bem” são os membros mais representativos do estado-nação, e os outros são “pessoas de mal” onde se incluem imigrantes, criminosos, minorias étnicas e religiosas e elites cosmopolitas… e quem não concorda com os populistas. Argumentam que esses grupos representam uma ameaça ao “povo”, por não compartilharem dos seus valores. Tendem a enfatizar o tradicionalismo religioso, a lei e a ordem, as posições anti-imigração e a soberania nacional.

No aspecto socioeconómico há os que defendem que as “pessoas de bem” são os honestos trabalhadores, em oposição às grandes empresas, detentores de capital e instituições financeiras internacionais que beneficiam injustamente das difíceis circunstâncias em que vive a classe trabalhadora. Esta forma de populismo é quase sempre acompanhada por uma ideologia de esquerda, embora a agenda política específica varie conforme o contexto.

O populismo anti-establishment afirma que as “pessoas de bem” são vítimas de um estado governado por interesses especiais. Frequentemente, esses interesses especiais são as elites empoderadas por um antigo regime (como, por exemplo, os ex-comunistas da Europa de Leste). Embora todas as formas de populismo sejam anti-establishment, esta forma distingue-se por focar no establishment o principal inimigo do povo e não semeando tantas divisões sociais. Os populistas anti-establishment tendem a competir em áreas problemáticas fora da típica divisão política esquerda/direita, como corrupção, reforma democrática e transparência.

E há os que juntam isto tudo numa amálgama que os leva a dizer tudo e o seu contrário.

São inúmeros os estudos sobre este fenómeno, que nem sequer é novo. Com variantes, há um consenso de que o aumento da desigualdade, o declínio dos vínculos com os partidos tradicionais estabelecidos, o aumento da importância da política de identidade e o ressentimento económico, desempenharam um papel importante no seu crescimento. As estratégias e tácticas usadas pelos partidos e líderes populistas representam uma ameaça directa à democracia liberal, pois ao enfraquecerem as instituições, destroem a divisão de poderes e, mesmo criando muito ruído, diminuem a fiscalização cidadã ao poder executivo. O populismo também é prejudicial à democracia porque exacerba a polarização política, dificultando o seu funcionamento efectivo. À medida que as sociedades se tornam mais polarizadas, as pessoas predispõem-se a tolerar abusos de poder e a sacrificar os princípios democráticos, se isso favorecer os interesses do que defendem, mantendo os interesses do outro lado afastados do poder. A democracia enfraquece, o diálogo desaparece — bem como o consenso —, uma crise profunda das instituições torna-se realidade, o desinteresse da maioria pelos assuntos que os afectam levam a uma inércia antidemocrática.

Para combater o populismo, os actores democráticos devem evitar a linguagem e o enquadramento que vinculam identidade e partidarismo. Devem aplicar estratégias que reduzam a polarização política, inclusive moldando a percepção das pessoas sobre as normas e evitando uma necessidade excessiva de esforços que dependem excessivamente de “educar” o outro lado.

Os partidos políticos que defendem a democracia liberal devem identificar e implementar abordagens para competir e envolver, de forma mais eficaz, os partidos populistas. Procurar reenergizar a mobilização de base para interromper os esforços populistas de explorar a falta de ligação entre cidadãos e partidos. Usando o conhecimento e a explicação, os partidos políticos conseguem tornar as pessoas menos vulneráveis às promessas populistas e mais dispostas a apoiar mudanças políticas. E nunca, nunca condescender.

O populismo não funciona, nunca funcionou. É autofágico, porque egoísta. Anda para trás, quando o caminho é em frente. Sou dos que se posicionam em defesa da democracia liberal. Dos que defendem que esta precisa renovar-se, recriar-se, de modo a envolver todos, ou uma maioria clara, nas decisões. A política não é um mal, mas a má política é-o. Sem qualquer dúvida.

4. “As multidões nunca tiveram sede de verdade. Diante das evidências que lhes desagradam, desviam-se, preferindo deificar o erro, se este as seduzir. Quem sabe iludi-las facilmente torna-se no seu mestre, quem tenta desiludi-las é sempre a sua vítima” - Gustave Le Bon