Crónicas

Era uma vez…

Que bom seria desembarcar um dia num arquipélago que não fosse vendido como uma terra de conto de fadas

1Disco: Morreu Andy Rourke. Baixista dos Smiths, uma das minhas bandas de eleição. Passei o fim de semana a andar de carro de um lado para o outro pela ilha maior. Foi a minha banda sonora.

2. Livro: Germano de Almeida é um dos meus escritores da língua portuguesa favoritos. Nesta nota rápida relembro que já aqui falei dele a propósito de “Dona Pura e os Camaradas de Abril”. Hoje fica a sugestão de “O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo”. E depois, se puderem, bebam-lhe todos os outros.

3. A crónica de hoje inova. No que a mim diz respeito. Escrevi-a à noite no telemóvel, e aos soluços, durante o fim de semana nos intervalos que fui arranjando em dias de actividade política intensa. Apelo à vossa condescendência para qualquer coisa menos certa.

4. Era uma vez um arquipélago. No meio do Atlântico irrompem do mar duas ilhas. Uma maior, e mais recente, pontuada de picos vulcânicos por todo o lado, dona de um verde esfuziante. Na outra, mais pequena, predomina o verde no inverno e o castanho-claro nos meses mais quentes.

Duas ilhas irmãs oferecidas ao homem nos idos do século XV. Impossível não amar a terra abrupta de uma e o areal extenso da outra.

Os homens moldaram-nas às suas necessidades. Com enorme esforço traçaram canais que levaram a água aos poios onde plantaram o seu sustento. Fizeram caminhos para aproximar e trazer para mais perto a distância. E depois aquela imensidão do mar, a precisar de ser desbravado, o futuro líquido para onde é preciso olhar com sabedoria.

Se a terra é perfeita, nós, os que sobre ela caminhamos, não o somos tanto. Fazemos o melhor com as nossas, tantas, imperfeições.

Sento-me por vezes na varanda e ponho-me a imaginar. O que seria desta terra que amamos, se pudéssemos voar e olhar de cima. Se pudéssemos entender o todo e não persistir em fazer pelas partes. Ter a imaginação que só a ambição da imaginação de um percurso comum nos pode dar.

Abraçar a montanha, serpentear o abismo, descer ao vale rasgado e beber das águas cristalinas da ribeira. Olhar o homem cansado que revolve a terra, o pescador que com um cigarro no canto da boca puxa o aparelho carregado de espada, a empregada de mesa de sorriso sincero que gosta do que faz, a arquitecta que pensa e traça a modernidade apoiada na tradição, o jovem que ouve com atenção a professora que ama o que faz. A ambição de querer ser e fazer melhor.

Uma cultura centenária que mistura saberes e sabores de tantas outras. Rua da Mouraria, Lombo do Mouro, a Mourisca dança regional, a dolência dos nossos cantares, o traje regional, o cuscuz, os borrachos, as lengalengas, o romanceiro pejado de estórias de mouras encantadas, o uso da segurelha e do coentro, o bolo do caco, o mouro Barque que no Porto Santo desmascarou o falso profeta. A cultura que recebemos do norte da Europa, seja sob a forma da pintura flamenga, seja pelo dentinho que acompanha o 1/4 de litro no balcão da tasca que fomos buscar ao inglês “dainty”, ou o modo como muitos de nós pronunciamos as siglas dizendo as letras à moda britânica. A nossa maneira de falar de que tanto nos devíamos orgulhar, a palatização da consoante ‘l’ (éle), o “e” que arrastamos no final dos verbos, o uso do gerúndio. Tudo marcas de identidade que são nossas e que devemos assumir e defender. Povo que renega aquilo que é, não o merece ser.

Era uma vez um arquipélago de gente valorosa, de onde muitos tiveram de partir em busca de uma vida mais digna e melhor. Uma terra adiada com tudo para ser de mais, mas governada por gente de menos sem ambição e saber.

Como era bom que pudéssemos entrar numa máquina que nos transportasse para um modo alternativo onde as coisas fossem diferentes.

Que bom seria desembarcar um dia num arquipélago que não fosse vendido como uma terra de conto de fadas. Uma terra de fiscalidade reduzida onde não fosse preciso entregar declarações de impostos porque o Estado sabia fazer as contas. Um sistema fiscal próprio reconhecido e invejado por todos, que seja considerado e invejado como um dos melhores do mundo. Que seja simples, eficaz e de fácil entendimento por todos. Simplicidade e tecnologia. Um sonho para quem abomina burocracia e os procedimentos sem sentido que acompanham o cumprimento das obrigações fiscais.

Um sistema que arrecade automaticamente os impostos e desembolse os apoios sem que os contribuintes e beneficiários precisem fazer seja o que for. Onde as empresas e os cidadãos não tivessem de ser funcionários não remunerados da administração pública, onde o empregador e as empresas não sejam responsáveis por reter os impostos e transferi-los para o Estado.

O fantástico que seria um sistema político de democracia plena e madura, que respirasse liberdade. Uma Autonomia profunda cujos únicos limites fossem os negócios estrangeiros, a representação do Estado, a defesa e a segurança interna. Com um governo sabedor, do povo e para o povo, e um parlamento digno e trabalhador. Com capacidade de negociar tratados separados de comércio, indústria, turismo e pescas com os seus vizinhos e podendo administrar o seu próprio sistema de bem-estar e apoios sociais.

Uma forte aposta no oceano, na pesca, no transporte marítimo rápido e acessível, na mobilidade, aquacultura, oceanografia, biologia marítima e bio e nanotecnologia, bem como engenharia e física relacionadas com o oceano.

5. O PSD, e o seu apêndice, e o PS são mais ou menos como aquele meme do crocodilo e do jacaré: um está ao lado do outro.

6. Mas últimas semanas temos visto, e comprovado o verdadeiro estado da nação. E o que temos é uma nação que não tem noção.