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Democracia ameaçada e (pouco) participativa

O populismo continua a fazer caminho, sobretudo junto dos mais jovens

1. “Imprevisibilidade” é talvez a palavra que melhor define o atual (e caótico) momento que vivenciamos (e as heterogéneas circunstâncias) e as nossas aceleradas, competitivas, consumistas, egocêntricas e vulneráveis vidas.

De crise económico-financeira em crise económico-financeira, de crise política em crise política, de crise social em crise social, de guerra (ou intervenção militar ‘especial’) em guerra, de crise ambiental ou ecológica em crise ambiental ou ecológica, de crise humanitária em crise humanitária, de crise sanitária em crise sanitária..., parece que este conturbado período na evolução do Homem – e das atuais sociedades – persistirá por mais alguns bons anos (em medicina, crise é o momento na progressão de uma doença em que ela se define entre o agravamento [e a morte] ou a cura [e a vida]), e aquela aguardada “mudança” que nos retirará desta aguda posição e nos colocará noutra preferível (bem mais razoável), com novas e compensadoras oportunidades, está, infelizmente, ainda bem longe de emergir.

Quem lucra com esta fragilidade e desequilíbrios (para não dizer “triste espetáculo” em que se transformou o jogo democrático), são aqueles que rapidamente se adaptaram e perceberam como agir nesta nova era da hábil manipulação e propaganda digital – bastante eficaz –, veiculada nas redes sociais através de um domínio/controlo proveitoso dos algoritmos. Na internet, mas igualmente nos meios de comunicação tradicionais (cada vez mais fragilizados) que lhes dão considerável palco mediático, instruem, com emoções e impressões negativas, o povo contra as elites políticas (e económicas) que se revezaram nos últimos anos nas cadeiras do poder. Os novos populistas, que não são ignorantes ou estúpidos, mas sim verdadeiros mestres na arte de mentir (os peritos “engenheiros do caos”, segundo Giuliano da Empoli), avessos às ideologias e unicamente interessados em chegar ao poder, têm como primeiro objetivo minar as bases das democracias liberais representativas a partir de dentro e, num rápido olhar pelo Ocidente nesta segunda década do novo milénio, estão a consegui-lo e em larga escala.

Segundo um recente estudo que abrange 55 países (“LIBERTÉS: L’ÉPREUVRE DU SIÈCLE”, coordenado por Dominique Reynié), divulgado no primeiro semestre de 2022, entre os quais Portugal, e no qual se procurou perceber como estão a evoluir – ou a regredir de uma situação considerada de ‘democracia plena’ –, perguntou-se a estas 55 democracias “quais são os seus medos?”. Se, nas sociedades democráticas, desde o século XIX, estávamos habituados a uma (certa) clivagem entre direita e esquerda e a um tipo de dialética (com alternativas) que fazia viver a democracia, com a queda da URSS houve uma determinada esquerda que desapareceu e simbolicamente deu a impressão de uma espécie de aluimento de toda a família da esquerda, o que é excessivo, mas foi esta a perceção que ficou. Nas palavras de Dominique Reynié, este importante facto histórico fragilizou a ideia de que a democracia é capaz do pluralismo e “daí para cá o enfraquecimento interno da democracia perpetuou-se”. Para além disto, o fenómeno da globalização (de intercâmbio cultural, social e político entre diferentes os povos e comunidades, decorrente do desenvolvimento de uma economia de escala planetária) favoreceu sobretudo os regimes autoritários e exibiu publicamente as fragilidades das democracias. Ao gerar muita riqueza, a globalização fortaleceu os países que lucraram com ela, como por exemplo a China e a Rússia (dados do crescimento real do PIB da China revelam que o país cresceu a uma média de 8.8 % entre 1992 e 2023), países não democráticos. Ainda sobre esta matéria, o proveito das democracias é hoje criticado mesmo por aqueles que não têm dúvidas em relação aos valores democráticos, sobretudo em termos de eficácia das decisões (que é superior nos regimes autoritários) e tal facto foi bem percetível no momento do combate à pandemia da Covid-19 por parte do regime chinês, o que deve representar para todos um alerta. Em suma, as democracias estão hoje em clara dificuldade neste novo tempo histórico e os desafios são múltiplos e enormes, e resta pouco tempo, escassos anos – “não mais de 10”, diz-nos Dominique Reynié –, para que as democracias adaptem o seu modo de agir e encontrem uma outra eficácia, pois, caso contrário, a maioria dos regimes democráticos estarão em risco na preferência pelos regimes autoritários. O perigo – e o itinerário já traçado – é bem visível para aqueles que querem ver! O populismo continua a fazer caminho, sobretudo junto dos mais jovens (18 a 24 anos), aqueles que não têm sólidas raízes e conhecimento do passado e os mesmos valores dos cidadãos mais velhos, para além de serem menos apegados às instituições democráticas. Mais: a má ‘gestão’ dos recentes casos mediáticos de alegada corrupção, prevaricação, tráfico de influências e oferta indevida de vantagem que levaram à queda de um Governo e dissolução do parlamento, não esquecendo o das gémeas luso-brasileiras que se arrasta há semanas e sobre o qual existem versões contraditórias, são os ingredientes primários para nos conduzirem ao populismo e a um contexto autoritário idêntico ao da primeira metade do século XX.

2. Nos termos do art.º 2.º da CRP, “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas (…) visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. Todavia, não tenhamos ilusões, no nosso pequeno país, por omissão ou ação deliberada dos atores e decisores políticos das últimas décadas, o regime que agora está prestes a celebrar os 50 anos de uma revolução, nunca criou verdadeiramente as condições para uma válida democracia participativa (e “direta”), como aquela de que dispõem os suíços e que serve de uma espécie de instrumento para “monitorizar” a ação dos representantes eleitos e, caso necessário, bloquear as suas decisões (através de referendos) ou forçá-los a agir/decidir (iniciativa popular). Lamentavelmente, a nossa democracia representativa fechou-se em si própria e são poucas as iniciativas que a levam a uma efetiva aproximação dos cidadãos (a Constituição consagra três tipos de referendos, os de âmbito nacional, local e o regional, mas se os nacionais apenas foram três – dois em 1998 e um em 2007 – e os locais não ultrapassam a dúzia, já os regionais não tiveram qualquer aparição). É também adequado mencionar que o artigo 9.º do ESTATUTO POLÍTICO-ADMINISTRATIVO da RAM prevê, em matéria de interesse específico regional dos cidadãos eleitores, o referendo regional, mas as autoridades políticas de cá nunca sentiram necessidade (ou vontade) em chamar os cidadãos a pronunciarem-se, a título vinculativo, sobre qualquer matéria/assunto relevante para o bem coletivo. (Talvez possamos começar um destes dias, por exemplo, com a ‘excêntrica’ proposta de prolongamento da pontinha em 400 metros, um investimento de milhões para o erário público e que será pago pelos contribuintes. Quem sabe!?).

Os Orçamentos Participativos são outra forma de democracia participativa. Visam contribuir para o exercício de uma intervenção informada, ativa e responsável dos cidadãos nos processos de governação, garantindo a participação dos interessados na decisão sobre a afetação de recursos às políticas públicas. Contudo, os burocratas tomaram conta desta iniciativa que deveria contribuir para uma educação cívica e incentivo ao diálogo com os eleitos. Os regulamentos (e incumbências) são feitos ‘à la carte’ para os que conhecem o sistema e não para o cidadão comum e seguem não uma lógica inclusiva, mas exclusiva. Mais: apenas 35 propostas validadas em perto de 106 mil residentes num concelho é manifestamente pouco. Não chega a 4 propostas por freguesia e, mais uma vez, lá está a aquisição de carrinhas para instituições, sendo que (algumas delas) já contam com apoios. Por último, creio que é útil referir que se os portugueses são dos mais preocupados com as questões ambientais e de sustentabilidade, nenhuma proposta nesta área passou a votação, e da edição anterior do Orçamento Participativo subsistem ainda mais de metade dos projetos por executar. Assim, a valia da confiança nas instituições democráticas é desfeita por quem as deve servir, tal como aos cidadãos.

Votos de umas Boas Festas para todos os colaboradores e leitores do Diário de Notícias da Madeira!