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As (anti)democracias da polarização

Numa época tão às avessas como a que atualmente atravessamos, em que a democracia está cada vez mais fragilizada pela corrupção política, atitudes como as verificadas em Brasília, onde apoiantes de Jair Bolsonaro invadiram e vandalizaram as sedes de poder brasileiro, são analisadas sob um prisma de ambiguidade moral. Na verdade, este não é um fenómeno propriamente novo e denuncia o verdadeiro problema que temos em relação à democracia da contemporaneidade e à forma como esta se desenvolveu em torno de personalidades e não de ideias, algo que evidentemente se observa mais nas Américas do que na Europa mas que, claramente, já se começou a importar para território europeu.

As invasões ocorridas em Brasília encontram paralelo óbvio no que ocorreu nos Estados Unidos em 2021, quando apoiantes de Donald Trump invadiram o Capitólio após a derrota eleitoral deste contra Joe Biden. Em ambos os cenários, temos cultos de personalidade virados à direita radical, ataques a sedes de poder após derrota dos líderes de tais cultos e, mais relevante do que tudo (mas constantemente ignorado pelos “especialistas”), o sentimento de que as eleições foram manipuladas. Ora, é claro que nestas questões existirá sempre uma maré de indivíduos criminalmente responsabilizáveis, com maior ou menor grau de culpa, que acabam por, mais cedo ou mais tarde, ser legalmente responsabilizados. Mas, verdade seja dita, a análise da situação nunca passa disso, de que a culpa é de X e do pensamento de X e de que o ocorrido é uma desgraça para o legado democrático de país Y. Por conveniência, nunca se levanta a questão do que é que está na raiz deste sentimento de fúria que leva cidadãos normais a se tornarem criminosos de relevo (quando falamos em situações equiparáveis a golpe de estado). Em Portugal, este assunto materializa-se de forma particularmente óbvia também quando a afirmação “a democracia portuguesa está em risco porque os fachos estão a crescer” tem maior relevância do que a pergunta “porque é que 48.58% dos portugueses não votou?”.

Quando nos perguntamos “porque é que isto acontece?”, a resposta mais direta é a de que “a outra equipa não aceitou o resultado”, mas, ao aprofundar esta veia de investigação, acabamos por chegar a uma conclusão um pouco decepcionante em relação ao porquê da outra “equipa” não aceitar os resultados — os sistemas/realidades democráticos nestes dois cenários são marcados pela agressiva polarização e por se centrarem em volta de pessoas singulares mais do que em ideias ou até mesmo partidos (é mais fácil se lembrar de Bolsonaro do que do Partido Liberal), o que acaba por criar falsas ideias de que a democracia se trata de uma “batalha entre o bem e o mal, entre Deus e o diabo”.

Todo este fenómeno transmite uma falsa realidade, que também é reforçada, direta ou indiretamente, pelas lideranças do culto, a de que estamos ou com o vencedor ou com o perdedor (“ou estás connosco ou estás contra nós”). E o que é que acontece quando as pessoas sentem que foram derrotadas, mesmo que numa democracia nada tenha a ver com derrotas? O extremismo.

Na democracia americana, encontramos o elemento mais solidificador da polarização da política: o sistema de dois partidos que basicamente se traduz na dominância democrática do Partido Republicano (conservadores) e do Partido Democrata (progressistas). Ora, este sistema é mais propício ao desenvolvimento de atitudes que substituem o partido pela pessoa (como se notou tanto na eleição de Trump, em que democratas acusaram a ingerência estrangeira nas eleições, como na eleição de Biden, na qual conservadores acusaram manipulação de votos) do que os sistemas multipartidários. Contudo, é nele, no sistema bipartidário, que a democracia é suposto ser unificadora e não fragmentadora como, aliás, demonstra a carta – acessível online a quem quiser um pouco de inspiração democrática — bastante respeitosa deixada por Bush a Clinton, após o último ter vencido as presidenciais de 1993.

A instituição democrática está em risco. Sempre o esteve e sempre estará porque é essa sua característica de permanente vulnerabilidade que a define. É por isso que a devemos cuidar, não através do recurso a ataques antidemocráticos, mas da denúncia da corrupção, da incompetência e daqueles que tanto desejam polarizar de forma extrema os eleitores. Como disse lapidarmente Abraham Lincoln: “Uma casa dividida contra si mesma não pode subsistir”.