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Belém, outra vez

José, homem já maduro, carpinteiro com nome na praça, encarava a gravidez da sua jovem esposa Maria com a seriedade com que pautara toda a sua vida. Nada fora deixado ao acaso: exames médicos, preparação para o parto, enxoval, marcação na maternidade, tudo fizera para evitar sobressaltos à sua mulher, mal saída da adolescência, e que estranhas conjunturas tinham destinado para esposa. Não contestara o Destino – decerto alguma Providência tinha decidido por ele, e ali estavam, aguardando o nascimento anunciado pelos mesmos desígnios insondáveis.

Estava assente que o parto teria lugar no Hospital de S. Francisco Xavier, ali para os lados do Restelo. Não que fosse da sua escolha. Os sogros, o Senhor Joaquim e Dona Ana, preferiam a modesta aldeia nos arredores, mas a lógica do Sistema Nacional de Saúde era outra: havia que dar à luz com todas as condições que o Sistema garantia; parir em casa estava fora de causa.

Assim partiram da sua aldeia para o local desconhecido que o censo, a divisão administrativa e a conservatória tinham determinado. Sem grandes preocupações: estava tudo previsto, planeado, organizado.

Mas Satanás, que, ao que se diz, anda pelo Mundo para perdição das almas, resolveu intervir. Assim, fez coincidir a data prevista com um fim de semana prolongado, com o planeamento de férias do pessoal, com as reivindicações dos enfermeiros, com as justas aspirações dos médicos, com a greve da Função Pública, com os transtornos dos transportes, com os hotéis sobrelotados e com o fecho do Alojamento Local.

Tudo isto junto deixou José e Maria à beira de um ataque de nervos. Sem maternidade, sem abrigo, sem Centro de Saúde (encerrado àquela hora), viram-se no desconforto e do abandono de uma terra desconhecida, à beira Tejo.

E foi ali, num abrigo improvisado de um terreno em obras, que Maria deu à luz.

Mas algo de estranho se passou.

Uns noctívagos aproximaram-se, e ajudaram como puderam. José e Maria perguntaram: como se chama este lugar? Um dos pintas respondeu: é Belém, ó meus! Por onde têm andado?

Uma vaca e um burro, que o dono da obra ali deixara, aqueceram o ambiente. Três astrónomos de passagem deixaram umas lembranças algo despropositadas. Outros foram deixando os seus presentes, conforme as posses de cada um.

A notícia espalhou-se. A comunicação social apareceu. O Presidente da Junta de Freguesia queixou-se da falta de meios; o Presidente da Câmara falou da incapacidade do Governo; o Diretor do Hospital da crise anunciada; o Ministro da Saúde garantiu que tal não se repetiria; e o Presidente de Todos disse que de tudo se tira uma lição.

E acertou: disse que haverá sempre Belém.