Crónicas

O cinema por aqui

Houve uma altura, e não tem assim tanto tempo, em que a programação de cinema no Funchal acabava por ser bastante devedora de uma certa perspetiva “colonialista”, chamemos-lhe assim, das distribuidoras: passavam-se meses e meses em que os dois grupos (empresariais) de salas da nossa cidade eram tendencialmente ocupados por blockbusters, desenhos animados e comédias rascas, sendo quase impossível termos por aqui algum cinema europeu, ou mesmo americano de mediana qualidade (o chamado “cinema comercial de qualidade”, como dizia, nos anos 90, o saudoso presidente do Cine Forum do Funchal). Era como se, focados só na bilheteira, os “programadores” de Lisboa decidissem enviar apenas o refugo das suas cópias mais rentáveis, supostamente porque não haveria por cá “massa crítica” suficiente para garantir o número de espetadores que justificariam a operação...

Na verdade, a produção de “blockbusters” a partir de grandes heróis da Banda Desenhada veio contaminar drasticamente a indústria do cinema: por um lado, impondo a sua lógica popular, mercantil, mais a rude simplificação narrativa; por outro, com a linguagem propriamente cinematográfica completamente trucidada pela parafernália tecnológica dos “efeitos especiais”. Tínhamos, assim, a Sétima Arte cada vez mais diluída na lógica consumista do puro espetáculo. Mas — como sempre, o tempo é o grande mestre! — as coisas tiveram que mudar um pouco no pós confinamento, com as salas a terem de gerir uma exibição mais “abrangente” para poderem manter a sua atividade nos mínimos (até porque as estreias dos blockbusters, e de outros grandes sucessos previstos, foram mundialmente canceladas pelas “majors”, à espera da ocasião oportuna para as boas receitas no almejado o regresso à normalidade).

Por conseguinte, acontece que, de há uns meses para cá, a máquina distribuidora de novos títulos tem vindo a alterar de modo bastante positivo o panorama da exibição no Funchal. É certo que houve, primeiro, a “aventura” do Madeira Screenings (e, a intervalos, a do Centro John Dos Passos), que veio proporcionar o visionamento de bom cinema europeu, português também, e de outras obras inéditas, filmes de autor ou de cinematografias pouco conhecidas, dadas as suas origens menos comuns adentro da lógica ocidental dominante. Na cidade, com esta proposta, era sempre possível encontrar, aos sábados, uma boa alternativa cinéfila, no meio da comédia negra que era a programação imposta aos “insulares”. Mas depois, semanalmente, com a exibição reiniciada no pós-confinamento, tem sido agora possível encontrar nas salas de cá alguns bons novos títulos, inteiramente a par com as suas estreias nacionais, o que também tem tornado mais estimulante, a esse nível, o panorama cultural envolvente. Nos últimos tempos, tem sido possível aceder ao tal “cinema comercial de qualidade”: filmes como “Cry Macho”, ou Dune, ou as últimas obras de Woody Allen ou de Paul Schrader, puderam ser vistas “em tempo” no Funchal, o que poderá ser também uma forma de nos reconciliarmos um pouco com a famosa ultra-periferia... cultural!

O cinema, arte e indústria. Uma não vive sem a outra, como o evidenciam as mil vicissitudes da “vida dos filmes”, vida longa, já de 125 anos. A produção, a distribuição, a exibição: não se pede às salas que sejam clubes de cinéfilos; apenas que, a intervalos, deixem algum espaço, outra vez, à verdadeira magia do cinema!