Crónicas

Aos 16

O laço e a camisa comprei na Casa Dural, estávamos nos anos 80 e era assim mesmo, às raparigas ficava bem usar roupa de homem

Lembro-me do corte de cabelo e de ter escolhido o modelo de uma revista. A dona Deolinda, a costureira, gostou do arrojo e fez-me o casaco com ombros de jogador de futebol americano, era a moda. Os sapatos desencantei-os na Cloé, uma sapataria cara, ali no Largo do Phelps e, como só havia o meu número naquele modelo, equilibrei-me em cima de uns saltos altos, a ver se seria capaz de aguentar o baile no Zodíaco. O laço e a camisa comprei na Casa Dural, estávamos nos anos 80 e era assim mesmo, às raparigas ficava bem usar roupa de homem.

Sei que sonhei noites a fio com a benção das capas, sonhos atribulados em que perdia o autocarro; outros em que não me deixavam entrar na festa e que me esquecia da capa em casa. O nervoso foi tanto que, quando me vesti, a camisa estava larga no pescoço e foi difícil manter o laço no lugar, mas quando me olhei no espelho do quarto de engomar pareceu-me aceitável. E, naquela tarde, antes de correr em cima dos saltos para a paragem do autocarro, passei pela casa da minha tia Alice.

E enquanto a minha tia comentava o casaco largo e a saia curta, pintei os lábios e roubei perfume à minha prima Ana. Estava cheia de planos para aquela noite, mas, por debaixo daquelas camadas de miúda moderna que até ia estudar para Lisboa, estava a menina tímida e desajeitada, tão insegura e romântica, que imaginara o mundo e as pessoas a partir do terraço da casa do Laranjal. E havia tantas histórias sobre a noite do baile das capas.

Românticas, todas. Os rapazes que ganhavam coragem, as miúdas de se mostravam mais bonitas, a música a tocar e, zás, havia faísca ali a meio de um slow. Também me podia acontecer, mas é claro que, comigo, não ia ser assim. A festa foi bonita na mesma, dancei e tirei fotografias, jantei fora num restaurante para os lados do Lido. Lembro-me de ter deambulado pela cidade, que nessa noite estava cheia de miúdos e miúdas de fato.

E, apesar de todas as ideias românticas que alimentei nas semanas que antecederam a minha primeira noite sem hora para chegar a casa, a minha memória é essa, de ser livre, nova, de estar com os amigos da turma, num Funchal em festa e da festa ser minha também. Por um momento, naquele caminho sobressaltado que foi a minha adolescência, estava onde devia estar e, detalhe importante, com uma roupa nova e à moda.

E há ainda outra memória, daquelas que me ligam ao meu irmão que, naquele mundo conservador dos anos 80, nem pestanejou quando garantiu que me levava e trazia inteira do baile. Às quatro da manhã - que era uma hora inacreditável em 1987 para uma rapariga, ainda mais no Laranjal - subi de dois a dois os degraus da entrada, já sem sapatos e os pés a latejar. Não trouxe do baile um príncipe encantado, trouxe o gosto da liberdade, de ser dona de mim e de como tudo isso me pareceu o melhor plano de vida naquela noite, aos 16 anos.