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Política de ‘cartel’

O poder – sua conquista e preservação – é sem dúvida aquilo que os magnetiza, e ninguém está disposto a abdicar dele

1. Estamos a pouco mais de 6 meses da nova (re)eleição da primeira figura de Estado, o Presidente da República (janeiro de 2021), e a 15 meses de distância da eleição de novos Órgãos das Autarquias Locais, ou seja, Marcelo Rebelo de Sousa está prestes a anunciar uma recandidatura mais do que certa (resta-nos, somente, conhecer todos os seus efetivos adversários no boletim de voto – potenciais ‘vencidos’ – pois um bom candidato/Presidente faz-se com 2 ou 3 habilitados adversários e não é um plebiscito), e o diversos partidos políticos começam já a preparar e lançar estratégias (reunindo-se ou não em congressos), apostando em putativos candidatos, para que 2021 seja um ano politicamente relevante e em que tudo pode acontecer.

Ora, se este é o cenário do que há-de vir, a deterioração da vida política portuguesa nos últimos anos, ou melhor, os evidentes sinais de degradação/desgaste do nosso sistema democrático representativo do pós-25 de abril, dita e obriga a que os principais responsáveis pelo regular funcionamento das instituições democráticas adotem, com a inteligência e coragem necessárias, os ajustamentos ou medidas retificativas imprescindíveis (e urgentes), pois o risco de esgotamento do atual quadro constitucional é real. Aliás, existem já no terreno propostas populistas de autoritarismo que semeiam e afiançam uma rutura constitucional, que se destacam e para as quais se conjetura um relevante sucesso eleitoral. Como é percetível, já não se trata de um “gigante adormecido”, pois a oferta e oportunidade política tem agora rosto(s), e sabemos todos que este ‘vírus’ tende a propagar-se com mais presteza numa conjuntura de crise financeira, económica de social como aquela que se abateu depois da pandemia da Covid-19.

É uma realidade indiscutível e clara para todos o crescente afastamento/alheamento dos cidadãos da vida política, com a correspondente perda de confiança nos eleitos e nas instituições públicas/políticas que estes lideram e representam. Tal fenómeno é bem evidenciado pelos níveis evolutivos do abstencionismo, nos diversos atos eleitorais e no progressivo défice de participação cívica e política (é de destacar que entre 1975 e 2015, a abstenção em eleições para a Assembleia da República octuplicou, e a eleição de 2019 teve menos 288.027 votantes do que o escrutínio de 2015, ou seja, um número bem superior a toda a população residente na RAM). Por outras palavras, o interesse dos cidadãos pela vida política – e o seu grau de confiança (palavra-chave em democracia) nos partidos políticos – têm vindo a diminuir, e a própria satisfação com o regime/sistema vigente (e sua capacidade de representação da sociedade) desvalorizou-se e baixou muito, sobretudo, nos últimos 15 anos. Se a isto adicionarmos problemas de governabilidade, o Estado encontrar-se refém de interesses instalados (e seu correspondente e crescente “enfeudamento”), a quase ausência de políticas de transparência públicas proativas e consequente descida do país no Índice de Perceção de Corrupção (indicador global sobre os níveis de corrupção no setor público de cada país), o atual sistema, tal como se encontra plasmado na Constituição da República Portuguesa, dá óbvios e incontestáveis sinais de progressiva erosão (alguns autores já falam de “pré-colapso”), afastamento da realidade e particularmente dos interesses/vontade(s) da maioria da população. Entretanto, nas últimas décadas, o que fizeram os responsáveis políticos para precaver ou mitigar esta situação? Em duas palavras, quase nada!

2. A palavra “cartel” tem vários significados e está normalmente associada a um acordo, aliança ou associação para um fim determinado ou com interesses comuns (por exemplo, um cartel de droga... e ficamos todos a compreender melhor – e a julgar – este tipo de organização, depois da exibição das três temporadas da série “Narcos”, na Netflix, que conta a história de Pablo Escobar e dos cartéis na Colômbia, em particular o cartel de Medellín.

Sinónimo de ‘colusão’ (conluio), na área económica corresponde a um acordo entre empresas com atividades concorrentes com vista a restringir a concorrência e estas obterem um controlo mais eficaz do respetivo mercado (prática anticoncorrencial, que se enquadra no n.º 1 do artigo 9.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio - “Lei da Concorrência”). Porém, na política o termo também já está consagrado e é usado para descrever um novo e determinado tipo de partido político (e atores), aquele que utiliza os recursos do Estado para manter a sua posição (dominante) dentro do sistema político. Se na área comercial há acordos entre empresas, práticas e decisões concertadas que têm por objeto ou como efeito impedir, falsear ou restringir de forma sensível a concorrência, na política assistimos (sobretudo depois dos anos 70 do século XX) a dirigentes de diferentes partidos que têm acesso aos recursos públicos, em conluio, ou seja, cooperando em vez de competirem, e aproveitando as posições/cargos que ocupam e relações pessoais ‘privilegiadas’, a obterem benefícios (financiamento, lugares, cargos – de topo no setor público, e que depois quando saem, dão origem a contratações milionárias no privado) para si próprios e/ou para o partido onde militam. Para além disto, também o desinteresse e declínio dos níveis de participação e de envolvimento (e de fiscalização) dos cidadãos nos assuntos da pólis (da comunidade), do que é público, fez com que os políticos e partidos de cartel se “estatizassem”, o Estado os financiasse e pusesse ao seu dispor/cedesse todos os meios, ao mesmo tempo que os seus interesses, motivações e decisões políticas se afastam cada vez mais das preocupações da sociedade civil, só retornando a ela quando é do seu interesse, sobretudo quando se aproximam as eleições (um pequeno exercício mental permite-nos conceber, e só parcialmente, o que fez um partido – e líder – para governar uma região durante 44 anos, agora coligado, por interesse próprio, com outra força política que sofreu pesada derrota eleitoral).

Com uma orientação marcadamente eleitoralista, com grandes recursos para campanhas eleitorais caras, altamente profissionalizadas, estes partidos e atores políticos já pouco ou nada revestem de ideologia política, de visão do mundo ou valores coletivos orientados para a ação social e política, isto é, para o Bem Comum. O poder – sua conquista e preservação – é sem dúvida aquilo que os magnetiza, e ninguém está disposto a abdicar dele (ainda muito recentemente um ministro e dirigente partidário considerava que as personalidades do Presidente da República e do primeiro-ministro se “combinam harmoniosamente”, e que o país ganharia se essa articulação continuasse “nos próximos tempos”..., tudo isto dois dias depois do Primeiro-ministro ter proposto a data para uma terceira visita à fábrica da Autoeuropa, para 2021, “no primeiro ano do segundo mandato do Presidente da República”.

Ora, se o estado de deterioração da democracia portuguesa carece e exige uma reforma estrutural que permita uma maior qualificação do regime, creio que é seguro afirmar que as necessidades do presente, obrigam forçosamente a respostas e atores diferentes no futuro. Quem foi (e ainda é) parte do problema, não pode fazer parte da solução! As insuficiências do momento atual pedem respostas novas e diversas, assim como novos protagonistas capazes de entenderem e promoverem um ideal de progresso que vise o Bem Comum e não objetivos político-partidários.

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