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Crónicas

Esta sensação de vazio

Em pequena diziam-me para acenar sempre que víamos passar um autocarro carregado de estrangeiros. Lembro-me de ir no caminho

Tenho andado tão enredada no presente, a saltar da reportagem das abertura das igrejas para os ginásios, dos nadadores salvadores com máscara ao como vai ser depois quando se deixar de contar mortos que me falta o tempo para pensar no que era dantes. O que me ocorre é que dantes havia turistas e agora nem vê-los e que, por isso, sobra tanto espaço nas ruas e nas esplanadas. Somos só nós, não se vêem aquelas pessoas vindas do Norte, com as marcas dos escaldões do sol nas pernas e nos braços.

Em pequena diziam-me para acenar sempre que víamos passar um autocarro carregado de estrangeiros. Lembro-me de ir no caminho e de me encostar ao muro para dizer adeus aos turistas. E, se calhar, dentro das gavetas de velhos ingleses ou suecos, estão fotografias minhas, ainda criança, fotos do mesmo rolo em que está o nosso jardim com a minha mãe a meio, muito orgulhosa. E tudo, eu muito morena, as flores e a minha mãe vestida de preto fizemos o pitoresco, o ‘very typical’.

A minha mãe teria ficado ofendida se soubesse que, chegados a casa, os turistas a quem nos mandava sorrir se mostravam espantados com a simpatia e a alegria das crianças descalças e dos jardins exuberantes nas casas pobres da periferia do Funchal. Não éramos ricos, mas dai até ser pobre ia uma distância e a minha mãe tinha vaidade em ser neta e filha de homens com terras. E se nós andavámos descalços era por vontade própria, por dar mais jeito do que as botas ortopédicas e por ser bom molhar os pés na levada e nas poças da ribeira.

E, enquanto nós fazíamos a nossa parte pelo turismo, as estrangeiras davam a volta à cabeça dos homens. No anos 70 e 80, os engates entre locais e turistas eram comuns. Lembro-me de que não davam boa fama e de ouvir comentários, daqueles feitos assim quase em segredo entre as minhas tias e a minha mãe quando, por acaso, alguém da vizinhança se embeiçava por um rapaz com história de andar com estrangeiras. O que, na minha cabeça de adolescente, me parecia muito, muito estranho se os rapazes eram novos e as estrangeiras velhas.

Prova de que percebia pouco da vida e do turismo que, na minha adolescência, era já de massas e enchia hotéis. Pelo menos enchia o Girassol, onde a minha tia Conceição trabalhava como empregada de andares e, ao fim do dia, trazia as revistas e os bolos que sobravam do pequeno almoço. O primeiro eclair que comi veio embrulhado em guardanapos e pareceu-me tão estranho como as revistas em finlandês, sueco, alemão e até em árabe. Foi quando descobri que se lê ao contrário.

E lembrei-me disto tudo agora que não sê turista e há como que uma sensação de vazio.

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