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Crónicas

Fundo de Emergência pelos Direitos Humanos

O que mais aflige, atualmente, mais do que já passámos, é o que começa a estar aí. E o que ainda aí vem.

A paragem da economia deixou muitos agregados familiares em situação de enorme fragilidade – uma ainda maior do que a que já existia. Vivemos numa Região em que o rendimento que a maior parte das pessoas aufere paga as despesas correntes e pouco mais.

Numa situação extraordinária como a que atravessamos, um grande número de pessoas que sempre trabalharam ficaram, de um momento para o outro, sem qualquer rendimento; outras, mesmo mantendo algum, viram-se incapazes de cumprir com os seus encargos financeiros: pagar salários, rendas, empréstimos ou as despesas mais ou menos fixas do mês.

Entretanto, foram criadas e divulgadas medidas de apoio em que se inclui um muito citado Fundo de Emergência Social. Com dotação financeira de cinco milhões de euros, foi dividido por dezasseis entidades que ficaram encarregues de o distribuir, mediante critérios previamente estipulados pela tutela. Não conhecemos ainda a taxa de execução destes cinco milhões, mas sabemos que os critérios deixam de fora muitas das pessoas em aflição – e que também deixa sem conseguir dormir as pessoas que têm a obrigação de analisar os processos em função dos critérios estipulados.

Por exemplo, as pessoas têm de fazer prova da perda de rendimentos com a situação da COVID-19, sendo que muitas não têm condições para o fazer porque muitas vezes não tinham sequer contratos de trabalho formalmente celebrados – ou os que existem não correspondem à realidade. O fundo exclui pessoas que residam na Região há menos de dois anos, o que deixa de fora uma parte das pessoas lusodescendentes, muitas delas em situação precária já antes do impacto da situação que vivemos. No que diz respeito à ajuda ao arrendamento, exclui quem não consegue fazer prova através de recibo – e sabemos que a sugestão de não haver recibo não parte, na maioria das vezes, de quem é inquilino mas sim de quem arrenda.

Certo é que muitas pessoas estão numa situação desesperante e numa terra de ninguém; para muitas, o Fundo de Emergência Social não passa de uma miragem, de um exercício retórico que em nada as ajuda a cumprir os compromissos financeiros ou a resolver um problema vital e imediato: pôr comida na mesa.

O que está em causa são direitos económicos e sociais, isto é, estão em causa Direitos Humanos. O Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais estabeleceu, já em 1976, como sendo fundamental para qualquer pessoa o direito a um nível de vida minimamente decente que inclua alimentação, vestuário e habitação. Isto implica que as entidades competentes assumam o compromisso de assegurar essas condições, nomeadamente através do direito ao trabalho e do direito ao trabalho com direitos, através da proteção social garantida em situações potenciadoras de desigualdade como são os casos do desemprego, da doença, da incapacidade ou da velhice. Estes direitos fazem parte dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (Nações Unidas) e simplificam-se com o imperativo ético de Não Deixar Ninguém Para Trás. Mas de facto, muitas pessoas têm ficado e continuam a ficar para trás. E, mais grave, finge-se que não ficam.

Adiante.

As associações de solidariedade não têm tido mãos a medir. À medida que aumenta o número de pessoas que precisam de ajuda, diminui, por exemplo, a capacidade para facultar bens essenciais, até porque muitas das associações a que as pessoas recorrem ficaram de fora da distribuição do Fundo de Emergência Social. Portanto, tem sido difícil fazer o milagre da multiplicação dos pães no terreno.

No meio de tudo isto, fica o desespero das pessoas e o imperativo de ajudar. De lidar com mensagens desesperadas. Com a Maria que pergunta se há comida para ela e para as suas crianças de dois e de seis anos, com o João que engole a vergonha e o sentimento de culpa, e pede ajuda.

Quem os salva de tudo isto? Quem nos salva de tudo isto?

Salvemo-nos.

Este é o verdadeiro desafio e estas são as perguntas a que temos de, diariamente, responder: conseguimos viver a nossa vida como se não percebêssemos o desespero? Não é nosso dever agir quando muitas vezes, com algum esforço nosso, podemos realmente fazer diferença na vida de outras pessoas? Como podemos nós, cada qual na sua circunstância, contribuir para a redução das desigualdades?

Nós. Todos e todas nós. Com a criação do movimento Hotelaria Madeirense Ajuda a Nossa Ilha, com a Câmara de Lobos Viva, com a Associação Monte de Amigos, com o Banco Alimentar, com a Presença Feminina e tantas, tantas outras que não é possível nomear e que têm assumido o compromisso de devolver alguma autonomia e dignidade a quem se vê sem chão. Que respondem à Maria, ao João, às suas filhas e aos seus avós.

O arco-íris não está em anúncios pomposos, retóricos e repetitivos; está nas empresas e nas autarquias que se organizam para colmatar carências que as entidades verdadeiramente responsáveis fingem não existir (como é o caso de colmatar as carências de equipamentos digitais e internet a crianças do 1.º ciclo); está na grande quantidade de cidadãos e cidadãs que têm feito o levantamento de necessidades, recolhas, entregas, doações e distribuição de afetos. Que criam caixas solidárias e as alimentam. Cidadãos e cidadãs que põem as suas capacidades e conhecimentos ao serviço do bem comum, que reparam computadores, confecionam refeições, distribuem edredons, organizam cabazes, pagam contas alheias, que se organizam e acodem pessoas em situação de risco.

Não mata a fome toda, mas mata alguma.

Um arco-íris de cidadania que tem sido um autêntico Fundo de Emergência.

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